domingo, 31 de outubro de 2010
PROJETO DE LEI DE CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
O projeto de Lei nº7376/2010 prevê a criação de uma "comissão de verdade" para apurar as violações de direitos humanos em períodos de exceção no Brasil, a exemplo do que ocorreu em outros Estados, notadamente a África do Sul. O pressuposto de criação desse tipo de Comissão, correto no nosso entendimento, é que só há reconciliação legítima baseada na verdade e no respeito à memória individual e coletiva. A reconciliação baseada em eufemismos, escamoteações e no esquecimento nunca é efetiva, porque as memórias cladestinas e marginalizadas ressurgem periodicamente cobrando as resposabilidades devidas. Leia a íntegra do projeto no link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/PL/2010/msg%20229-100512.htm Esse projeto será ainda votado pelo Congresso Nacional. Esperamos que seja aprovado. Em sendo aprovado, esperamos que a Comissão persiga e alcance a verdade. Encontrando a verdade, que ela sirva para superar as estruturas autoritárias, memória triste, que ainda se mantêm na sociedade brasileira e contribuem para que a nossa democracia seja apenas formal.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Tropa de Elite e a “Síndrome de Tontons Macoutes”
Ontem fui assistir à seqüência do filme “Tropa de Elite”, e fiquei realmente feliz em ver o cinema fervilhando para assistir a um filme nacional, com exibição simultânea em várias salas, todas lotadas. Fiquei também contente porque o filme traz uma reflexão sobre um tema central na vida dos brasileiros que é, exatamente, a nossa qualidade de vida nas grandes cidades e todos os problemas administrativos que esse tipo de organização social traz. É também uma excelente oportunidade para refletir sobre o papel do Estado Brasileiro, enquanto máquina para produzir o bem-estar dos cidadãos, realizando o interesse público. Não existe outra razão legítima para a existência do Estado moderno que não a satisfação do interesse coletivo com a realização do bem estar. Essa máquina administrativa passa problemas estruturais, que o filme “Tropa de Elite” pretendeu deixar entrever, que demandam um contínuo planejamento, ações de fiscalização efetiva e aperfeiçoamentos, o que é normal nas instituições. Para solucionar esses problemas estruturais, ainda que gradualmente e ao longo de muito tempo, é preciso identificar e corrigir anacronismos e heranças de práticas autoritárias e de corrupção que permeiam o denominado “sistema”. O sistema tem que ser superado, não vencido. Tem que ser aperfeiçoado, não destruído. E a memória existe para servir de referencial nesse processo de aperfeiçoamento, caso contrário seríamos sempre obrigados a recomeçar do zero. O filme é polêmico, meio deprimente, e enseja a reflexão e indignação, o que já seriam virtudes suficientes numa obra de entretenimento. Mas além disso, é também bem realizado, aos meus olhos leigos e apaixonados por filmes. Em síntese, gostei. Mas como além de apaixonada por cinema também sou muito (ou pretendo ser )crítica, e agora posso me expressar na internet (Deus deu asa à cobra!), vamos às minhas considerações: a)Primeiro, como jurista, entendo que a defesa dos direitos humanos em geral é uma causa que tem argumentos valiosos por si só. A defesa da igual dignidade entre todos os indivíduos, sem distinção de gênero, nacionalidade, cor, raça e em conformidade à diversidade cultural é um valor em si. Não é preciso justificar essa defesa com argumentos falaciosos, como acontece com o personagem “Fraga”. Para lutar pela melhoria das condições do sistema carcerário não é preciso argumentar falaciosamente: com o pretexto de realizar uma comparação entre o crescimento da população carcerária e da população brasileira em geral, o roteirista através do personagem afirmou que daqui a algumas décadas todos os brasileiros estariam presos. Isso porque a população carcerária dobra a cada oito anos, enquanto que a população em geral dobra a cada 50 anos. Ou seja, daqui a algumas décadas no Brasil o principal crime será nascer porque só assim essa pseudo- estatística pode ser minimamente verdadeira. Melhor dizendo: para ser preso a pessoa tem que cometer um crime, e essa é a variável a ser considerada. Sendo otimista, talvez daqui a algumas décadas os brasileiros deixem de cometer crimes, o sistema carcerário se torne obsoleto e a polícia seja reformatada apenas porque têm valor de existência. Se é para fazer a “reductio ad absurdum” nos argumentos, porque não podemos ser otimistas? b) O segundo, e gravíssimo problema, é que o filme não ensina os caminhos institucionais para enfrentar o problema. O personagem “Fraga”, o solitário e apartidário deputado com discurso de “esquerda” , passou o filme inteiro esperando que a imprensa publicasse o seu dossiê sobre as milícias, para então conseguir a abertura de uma CPI. Vários problemas de encaminhamento! A imprensa investigativa é fundamental, mas não dispõe dos instrumentos necessários para julgar e condenar os criminosos, embora esse julgamento e sanção às vezes aconteçam previamente, e com conseqüências nefastas para a honra dos inocentes. O Brasil possui uma instituição específica para investigar e realizar o jus persequendi, que é o Ministério Público. Os Promotores e Procuradores da República podem (por enquanto?) realizar investigações e adotar as medidas cabíveis. Cadê o Ministério Público em Tropa de Elite? E desde quando CPI é um processo investigatório eficiente? Os deputados em geral e Senadores não têm o treinamento necessário para conduzir interrogatórios, por isso os depoimentos são tão longos e improdutivos. Se ao invés de centenas de deputados, tivéssemos centenas de delegados aposentados (eu confio no poder grisalho), tenho certeza que seriam feitas perguntas mais precisas, objetivas, e quem sabe até conseguidas informações interessantes. c) E finalmente, porque a mensagem já está longa demais, tem a “síndrome de Tonton Macoute “. Quem não lembra do flagelo da milícia semi-governamental que assombrava, literalmente, o povo haitiano? Um grupo criado para garantir a ordem autoritária da família Duvalier, através do terror, da violência e da intimidação, que somados ao misticismo da cultura local, levaram à sua identificação com o bicho-papão, mal traduzindo a idéia. O grande problema com o bicho papão é a idéia de que ele é “osso duro de roer, pega um, pega geral e também vai pegar você”. A ameaça da vitimização não seletiva, e de que você é a próxima vítima, é muito eficiente para impor o terror e a conformidade de comportamento baseada no medo. Só não ficou claro para mim quem é o bicho-papão dessa estória: o BOPE, a polícia corrupta, os políticos, a negligência do homem cordial brasileiro, o “sistema”. Quem é o bicho-papão nessa estória, parceiro?
sábado, 23 de outubro de 2010
O DIREITO FUNDAMENTAL AO ESQUECIMENTO
Esquecer é uma necessidade tão vital para o ser humano quanto lembrar, porque permite selecionar as informações ininterruptamente recebidas, preservando aquelas que são úteis, necessárias ou significativas. Não existe uma verdadeira contradição entre lembrar e esquecer, pois fazem parte do mesmo processo. Como afirma Filloux (1959, p. 73): "O esquecimento é dotado de um caráter teleológico, não é o avesso da memória, mas um aspecto indireto dessa mesma memória, tem uma função positiva, e essa forma da sabedoria humana, que chamamos de experiência, não consiste menos em expulsar do espírito os pormenores inúteis, insignificantes e vãos, do que guardar os que comportam um ensinamento ou uma lição". É possível reconhecer no Ordenamento Jurídico Brasileiro a existência de um direito ao esquecimento, consistindo em poder esquecer e ser esquecido, manifestando-se em três posições jurídicas básicas: a) o direito ao cancelamento de registros e retirada do indivíduo da esfera pública; b) pelas diversas formas de prescrição e c) por institutos como a anistia e o indulto (DANTAS, 2010). A concepção do esquecimento como um direito modifica grandemente o seu significado jurídico porque, tradicionalmente, era concebido como uma forma de punição ou benevolência. Enquanto penalidade, pode ser citada a damnatio memoriae, um instituto de Direito Público Romano que consistia em fazer desaparecer o nome do imperador governante defunto dos documentos dos arquivos e das inscrições monumentais (LE GOFF, 2000, p. 26; WEINRICH, 2001, p. 59). Como benevolência do soberano, o esquecimento geralmente é exercitado através dos institutos da anistia, do indulto ou graça, para solucionar os inconvenientes sociais e políticos causados pela aplicação de uma legislação anacrônica ou inadequada aos fatos, pacificando a opinião pública. Pensando bem, a clemência governamental enquanto favor e faculdade do soberano, nos parece uma herança dos Estados Absolutistas, e embora possa ser excepcionalmente justificável, deixa transparecer a necessidade de atualização do instituto nos moldes do Estado de Direito democrático. A aplicação do princípio da clemência deve ser pautada pelo respeito aos princípios da legalidade e da igualdade, especialmente porque está submetido ao juízo de discricionariedade dos poderes constituídos, havendo o risco de utilizar esse instituto para fins contrários ao interesse da sociedade, abusando desse poder (BORTOLOTTI, 1978, p. 1681-1711). Por exemplo, embora seja legal, a concessão de indultos em épocas festivas talvez atenda às finalidades de gestão da política criminal, diminuindo a lotação dos presídios e penitenciárias, mas não temos tanta certeza quanto a atender às finalidades de reeducação e reabilitação (?) do preso e de pacificação social. O esquecimento em suas várias formas jurídicas pode ser legalmente exercido, desde que não sirva para violar a moral, a consciência e as memórias individual e coletiva. REFERÊNCIAS BORTOLOTTI, Dario. Il principio costituzionale della clemenza. Rivista Trimestralle di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 37 (4), p. 1681-1711, 1978. FILLOUX, Jean-Claud. A memória. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Lisboa: Edições 70, 2000. WEINRICH, Harald. Lete – Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
domingo, 17 de outubro de 2010
OS LUGARES DA MEMÓRIA
A memorização é uma técnica baseada na sistematização dos registros a partir da criação de lugares e de uma ordem de disposição específica. Os lugares da memória (loci) são construções arquitetônicas mentais onde são guardadas as imagens de palavras e coisas. Segundo Yates (1974, p. 31), os lugares da memória também podem ser chamados de topoi, afirmando que o livro Tópica de Aristóteles provavelmente refere-se a técnicas mnemônicas. A memória é produzida, estabilizada, contida e mobilizada através da construção do patrimônio cultural, que consiste em topos partilhado, aceito e transmitido pelo grupo social (SMOLKA, 2000, p. 188). Nessa linha de raciocínio, Pollak (1989, p. 3) afirma que os monumentos e tradições são os lugares da memória, que servem como indicadores empíricos do que é comum a um grupo, e que ao mesmo tempo o torna singular, diferenciando-o dos outros. Quanto mais notáveis tais imagens, por serem incomuns, belas, ridículas ou grandiosas, mais forte impressão causam e são lembradas mais facilmente, por isso o banal é facilmente esquecido (YATES, 1974, p.9). Essa noção de memorização pela excepcionalidade acabou por nortear as políticas de preservação dos bens culturais no Brasil, sendo consagradas a notabilidade, grandiosidade, monumentalidade ou antiguidade como critérios de identificação, que a partir da Constituição Federal de 1988 (art. 216) perderam a sua funcionalidade e sua validade, visto que hoje são a ressonância social e a representatividade que tornam o bem cultural passível de preservação estatal. Essa mudança de orientação na identificação e escolha dos bens a serem preservados pelo Poder Público, e no aspecto mais pragmático, na utilização de recursos públicos na preservação, permitirá que sejam eleitos outros lugares da memória, mais democráticos e mais abrangentes da diversidade cultural brasileira, permitindo a inserção de bens e grupos que até então não tiveram voz, como igualmente “dignos” do ponto de vista memorial. Portanto, esses lugares da memória, tanto em seu sentido material quanto imaterial, servem de estímulos para a construção e ativação da lembrança, de modo que permitam a apropriação dos significados veiculados pelos indivíduos e grupos, contribuindo para a sua identificação cultural, que é fundamental para a sua inserção nas instituições, sem o qual se torna inviável o exercício efetivo da cidadania (DANTAS, 2010, passim). REFERÊNCIAS DANTAS, Fabiana Santos. Direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 2, nº 3, p. 3-15, 1989. SMOLKA, Ana Luíza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultural. Educação e Sociedade, nº 71, vol. 21, p. 166-193, jul. 2000. YATES, Frances. The art of memory. Chicago: University of Chicago Press, 1974.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
O Angelim da Mangabeira
Hoje eu ganhei uma estória. Havia uma árvore do tipo Angelim no bairro-árvore chamado Mangabeira, vizinho da Tamarineira. O Angelim, como qualquer outro morador do bairro, envelheceu e acabou morrendo, e isso já faz um tempo. Morreu mas não foi esquecido. Os outros moradores do bairro mantêm viva a sua memória, e, se alguém chegar lá perguntando pelo Angelim, ainda há quem aponte o lugar vazio dizendo: é ali. Não foi, é ali. Até quem nunca viu o Angelim sabe que aquele é o seu lugar. E ele continuará lá, enquanto não for esquecido. Esse é o poder da memória coletiva.