terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Patrimônio Imaterial e Democracia

O patrimônio cultural é o conjunto formado bens culturais tangíveis e intangíveis valorados pela sociedade, que assumem um significado ou relevância, constituindo-se em referências identitárias. Durante bastante tempo, e até a primeira metade do século XX, o patrimônio cultural era “sinônimo de obras monumentais, obras de arte consagradas, propriedades de grande luxo, associadas às classes dominantes, pertencentes à sociedade política ou civil” (BARRETTO, 2000, p. 9-11). Tal entendimento refletiu-se na legislação, como se pode observar na Constituição de 1934 e posteriores, ao consagrarem a existência de bens notáveis, aqueles que por sua grandiosidade ou beleza passavam a constituir referências para determinado povo. Mas o conceito de patrimônio cultural mudou, acompanhando a sensível mudança dos conceitos de História e de Arte. Por exemplo, antes o “histórico” consistia no relato das grandes batalhas e feitos, mas agora também abriga o cotidiano das pessoas, pelo que o patrimônio histórico passou a englobar todos os utensílios, hábitos, usos, costumes, crenças e a vida cotidiana de todos os segmentos que compuseram e compõem a sociedade. A noção de patrimônio surge quando o indivíduo ou grupo de indivíduos reconhece como seu um objeto ou grupo de objetos. Essa concepção de patrimônio traz em seu bojo a idéia de apropriação pelos indivíduos, e sugere que ele possui valor, aqui entendido como o apreço individual ou social atribuído aos bens de uma circunstância histórica e segundo o quadro de referências e representações. Portanto, o patrimônio é uma construção social, que depende daquilo que um determinado grupo humano, em dado momento, considera digno de ser legado às gerações futuras (DANTAS, 2010). Esse conceito doutrinário de patrimônio cultural é mais amplo do que o seu conceito legal, delineado principalmente pelo artigo 216 da Constituição Federal, combinado aos artigos 225 e 215. E esse descompasso ocorre porque na legislação o patrimônio é aquele conjunto de bens culturais preserváveis através da tutela jurídica estatal, ou seja, existem bens culturais que serão excluídos dessa tutela jurídica pelo Estado, simplesmente porque é impossível proteger TUDO, e são necessários critérios de discriminação entre o que será protegido e o que não será, e como. A forma legal e estatal de preservação vai variar conforme o tipo de bem: se material (objetos móveis ou imóveis, portanto tangíveis) ou imaterial (bens intangíveis) que, exemplificativamente, podem ser as danças, o folclore, os modos de fazer, viver e criar, o sotaque das diversas regiões do Brasil, entre outras manifestações. Essa última categoria –patrimônio imaterial- é uma das grandes novidades incorporadas pela CF/88 e também pelas recentes normas internacionais, podendo citar-se a Convenção da UNESCO de 2003 para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e a Convenção da UNESCO de 2005 para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. A principal característica do patrimônio imaterial, segundo Mendes (2005) é que a sua constituição decorre de um processo dinâmico, marcado pela fluidez e pluralidade de conformação, além de uma grande oscilação espacial e temporal. A questão que nos preocupa no momento é: como o Poder Público pode preservar o patrimônio imaterial, que por definição é fluido e dinâmico, de forma democrática e sem significar o engessamento essencialista dessas manifestações? Duas são premissas básicas do raciocínio: a liberdade de expressão é um direito (não um dever), e ninguém pode ser compelido a associar-se ou manter-se associado. Então, quem preserva deve sempre considerar que essa ou aquela manifestação cultural pode desaparecer por falta de adesão da população. O que aconteceria se, amanhã, ninguém mais desejasse ser Caboclo de Lança? O Maracatu Rural simplesmente morreria, especialmente porque não há maneira legal de obrigar as pessoas a continuar com determinada prática cultural (o contrário é possível, proibindo). Então preservar o patrimônio imaterial significa manter vivo o apetite das pessoas, e isso se faz dando-lhes condições de acessar as fontes da cultura nacional (art. 215) e de transmitir a memória coletiva dessas manifestações às futuras gerações, o que só acontece quando há consciência do seu valor e importância. Por isso, as políticas públicas de preservação, no nosso entender, devem fomentar essas manifestações culturais, criando o ambiente propício para que se desenvolvam, sem no entanto incorrer em dirigismo. O próprio registro, instrumento previsto pelo Decreto nº 3551/2000, é sábio ao prever que a cada década a manifestação deve ser reavaliada, para acompanhar (não barrar) as modificações que venha a sofrer. E finalmente, mas não encerrando o assunto, não devemos esquecer que muitas dessas manifestações sobreviveram independentemente da interferência estatal, e muitas vezes até mesmo como forma de resistência contra a perseguição institucional, ou apenas porque estavam à margem das políticas públicas. A preservação eficiente pelo Estado, neste caso, me parece consistir em evidenciar a importância coletiva dessa manifestação para a diversidade cultural do Brasil, que assim como a biodiversidade, representa a manutenção das opções e alternativas de desenvolvimento, que constitui o cerne do princípio da solidariedade intergeracional. A diversidade é um bem em si mesmo porque a realidade diária da sociedade é a diferença e não a homogeneidade: as diferentes maneiras de viver, criar fazer, sentir e expressar criam um mundo variado, que aumenta as escolhas, as capacidades e os valores humanos, o que, afinal de contas, é o que a democracia significa. REFERÊNCIAS BARRETTO, Margarita. Turismo e legado cultural. São Paulo: Papirus, 2000. DANTAS, Fabiana Santos. Direito Fundamental à Memória. Curitiba: Juruá, 2010. MENDES, Antônio Arthur Barros. A tutela do patrimônio cultural imaterial brasileiro – breves reflexões.

Um comentário:

  1. A democracia, em si, é um patrimônio cultural imaterial a ser preservado. Para quem tiver interesse no tema, escrevi um artigo que pode ser lido na íntegra aqui: http://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/8g6821fe/f4ahS97zqGIsp2yR.pdf

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