quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Memória coletiva e autoritarismo (3): o legado do medo

Os períodos ditatoriais têm efeitos que se prolongam no tempo, mesmo após a queda dos regimes, razão pela qual a transição para os períodos democráticos varia quanto às formas e ao tempo de concretização.

Já discutimos em dois outros posts (cf. http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2012/05/memoria-coletiva-e-autoritarismo.html, http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2012/06/memoria-coletiva-e-autoritarismo-2.html) alguns aspectos danosos dessa reminiscência ditatorial que permeia a nossa memória coletiva, especialmente na cultura de desrespeito aos direitos fundamentais.

Essa mentalidade autoritária é transmitida entre nós, e às vezes pode até passar despercebida. Mas olhando em nossa volta, é possível identificá-la em práticas sociais, músicas, discursos.  Talvez o efeito mais palpável dessa persistência seja o medo.

Os brasileiros em geral temem.

Não digo que seja um medo abstrato ou desarrazoado, já que efetivamente vivemos uma realidade de violência cotidiana.  E ele se manifesta de forma concreta: nas grades em portas e janelas, inúmeros seguros, alarmes, câmeras (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2012/02/resgatando-instituicoes-antigas-fosso.html).

A falta de segurança é uma grande indústria, muito rentável, mas não vamos tratar disso agora.  Evidentemente que esse ambiente de desrespeito aos direitos fundamentais e falta de segurança geram o medo constante, escultor de uma sociedade de feições deformadas.

As pessoas têm medo de exercer os seus direitos, que só posso considerar como efeito da reminiscência autoritária .  Vou ilustrar com exemplos do cotidiano:

a) Quando vão expressar a sua opinião, algumas pessoas utilizam a frase "eu não tenho medo, eu falo mesmo".  Você já ouviu isso?  É uma forma de preparação para uma eventual discordância que virá, superando um contexto que parece ensinar o contrário.

b) Mesmo quando o ambiente é propicio ao debate e à eventual discordância, as pessoas temem dar a sua opinião, especialmente se ela for discordante da autoridade presente.

c) Reclamações de direitos não são bem recebidas por membros do grupo.  Quantas vezes já presenciei cidadãos indignados porque foram mal-atendidos em bancos, supermercados, serem olhados de esguelha e julgados mal por outros cidadãos que também sofreram e sofrerão o mesmo tipo de situação.

Essa pressão contrária às reivindicações é quase física.

Quantas vezes eu já ouvi a frase:  "fui demitido, mas se eu entrar com uma ação trabalhista eu fou ficar sujo". Sujo fica quem não cumpre as obrigações trabalhistas.

É claro que faz parte dos períodos de transição um certo estranhamento com o exercício de direitos, o que leva alguns cidadãos a extrapolarem em certas situações.  O abuso do direito e o exercício arbitrário das próprias razões fazem parte de uma mesma ignorância, que só será superada com uma educação jurídica da população.

11 comentários:

  1. Reiterando. Reclamações de direitos não são bem recebidas.

    É fato que as pessoas têm o direito de manifestar a sua concordância ou a sua discordância, e também é fato que por vezes extrapolam.

    É preciso criar canais efetivos para a manifestação das pessoas, e não considerar essas manifestações como "baderna".

    Hoje estava lembrando dos filmes produzidos para doutrinar, digo, educar a população para o Golpe de 1964. Títulos como: "Deixem o estudante estudar", "O Brasil precisa de você", profecias de uma nova forma de democracia - pacífica e eficiente - sem agitação social e sem notas desafinadas, que culminaram em uma ditadura que durou décadas.

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  2. Os serviços de transporte público no Brasil são deficientes. As tarifas sobem mas a população não vê a correspondente melhoria do aumento do custo refletida em qualidade.

    Por este motivo as pessoas protestam, e têm direito de protestar. E têm direito de ser ouvidas e que sejam tomadas providências.

    O protesto contra o aumento das passagens partiu de uma necessidade concreta e cotidiana da população. Ninguém está reivindicando "liberdade" e "fraternidade", mas diante do tratamento que as pessoas receberam, preocupações prosaicas transformaram-se em um oportuno questionamento sobre a democracia.

    AS manifestações em São Paulo não são uma "primavera", e ocorrem apenas porque não há canais institucionais que funcionem.

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  3. O que era esperado e evidente aconteceu: uma discussão sobre preço de passagens transformou-se em um questionamento maior e mais significativo sobre "como as coisas funcionam".

    Evidentemente isso iria acontecer. O slogan de alguns manifestantes é emblemático: "não lutamos por R$ 0,20 (vinte centavos, o preço do aumento), mas por democracia".

    Virou uma luta por princípios.

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  4. Pessoas presas porque estavam portando vinagre na manifestação, utilizado para amenizar os efeitos de gás lacrimogêneo.
    Vinagre.

    O episódio rendeu até a criação de um "V" de vinagre.

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    1. E três anos depois, aconteceu de novo. Vários cidadãos foram presos porque carregavam kits de primeiros socorros para a manifestação do dia 04/09/2016, máscaras e, imaginem, vinagre.

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  5. "Esse negocio de regime democrático é bom, mas às vezes é preciso parar com essa besteira".

    Taí a prova nesse monte de barulho por causa de vinagre ou 20 réis.

    Bom mesmo são os regimes autocráticos onde o governante só precisa atender às reivindicações da monarquia ou alta burguesia, né não?

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  6. Jornalistas presos por desacato quando, no exercício de sua função, se recusaram a acatar a ordem policial de desligar câmeras ou não cobrir acontecimentos.

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  7. Paraná, 2015. Duzentos feridos em uma manifestação de professores contra um projeto de lei que muda a previdência. Mais uma vez, se houvesse canais institucionais eficientes para propiciar o diálogo, nada disso seria necessário. http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/violencia-da-pm-deixa-mais-de-cem-feridos-no-parana-6622.html
    Por que reprimir com violência uma manifestação pacífica?

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  8. É interessante ler os cartazes das manifestações "pacíficas e democráticas" no Brasil. Tanta violência e ameaça, partindo de "gente de bem".

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  9. "O medo é uma linha que separa o mundo
    O medo é uma casa aonde ninguém vai
    O medo é como um laço que se aperta em nós
    O medo é uma força que não me deixa andar" (Lenine)

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