quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Holocausto Brasileiro - Daniela Arbex

Estou em férias e aproveitei para ler um livro que estava no meu radar há tempos:  Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex.  Trata-se de uma reportagem sobre o Hospital Colônia de Barbacena (Minas Gerais), tornada um símbolo da incompreensão da doença mental, do tratamento desumano conferido aos pacientes, familiares e trabalhadores de lá, que na verdade é um retrato brutal do sistema manicomial brasileiro.

No post http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/09/esquecedouros-manicomios.html, já refletimos sobre como os manicômios são lugares de esquecimento, assim como prisões, asilos, cemitérios, orfanatos, entre outros.  São lugares onde pessoas e objetos são depositados, longe dos olhos da sociedade para que, invisíveis, tornem-se também irrelevantes.

O problema com esquecedouros é que lá também são esquecidos os direitos fundamentais.  E essa era exatamente a situação do Hospital Colônia de Barbacena.

Em síntese, essas foram as práticas denunciadas pelas diversas reportagens que trataram do assunto:

- Internamentos sem diagnóstico;
- Permanência sem nenhum tipo de tratamento;
- Medicação genérica, aplicada por pessoas não capacitadas e sem prescrição;
- Fome e sede;
- Alojamento inadequado;
- Abusos físicos e psicológicos cotidianos.  Os doentes dormiam no chão, ficavam no pátio ao sol o dia inteiro, e à noite enfrentavam o frio nus.
- Utilização de eletrochoques e ducha escocesa como forma de punição pelo "mau comportamento" dos internos;
- Classificação genérica de "mau comportamento".  Até uma reivindicação justa por comida, água ou melhores condições de vida ensejariam punições.
- Escravidão:  trabalho não remunerado, inclusive em funções públicas como varrição e capinação das ruas do município. Trabalho escravo na construção civil, p. 132.
- Mortes diárias devidas aos maus-tratos (no pior momento, chegaram a 16 mortes por dia);
- Venda  de cadáveres (entre 1969-1980 foram 1853 cadáveres vendidos), p. 78.
- Adoção irregular dos bebês nascidos no hospital.

Os internos, que não passavam por qualquer tipo de diagnóstico, eram doentes, prostitutas, homossexuais, esposas de homens infiéis que queriam ficar solteiros, inimigos políticos, mães solteiras (p. 61), trazidos de vários lugares do Brasil.  Eles chegavam no hospital através de um trem, que foi apelidado carinhosamente de "trem de doido", expressão que se incorporou ao linguajar mineiro.

Seguindo essa receita, o resultado não poderia ser outro: 60 mil mortos.

As imagens do livro são fortes, basicamente as fotografias de  Luiz Alfredo, tiradas para uma reportagem histórica da revista Cruzeiro, de 1961.Para ver as fotos: https://www.google.com.br/search?q=luiz+alfredo+col%C3%B4nia+barbacena&safe=off&biw=1600&bih=775&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=JhMbVLjsFNWkyATX-ILwAg&ved=0CAYQ_AUoAQ.

Como é da nossa tradição brasileira, apesar das denúncias contundentes desde 1960, a realidade dos pacientes e trabalhadores demorou bastante a mudar.  Mais um exemplo da resistência à mudança (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2014/05/13-de-maio-abolicao-da-escravidao.html) e da procrastinação (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2014/04/conhece-te-ti-mesmo-brasil-procrastinar.html), que parecem permear o nosso modo de viver, nossa memória.

Também não houve nenhum tipo de reparação às vítimas, e nem de responsabilização àqueles que mantinham esse sistema.

Não concordo com a comparação de tragédias, que são únicas e irrepetíveis.  Acredito que o nome "holocausto brasileiro" é uma tentativa de dimensionar o horror do que acontecia no Hospital Colônia de Barbacena, comparando-o ao processo de extermínio denominado "Holocausto", ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, que evidentemente foi muito diferente nos seus aspectos externos, internos e causas.

Hoje a realidade Hospital mudou, assim como mudaram alguns aspectos dos chamados manicômios, que foram praticamente abolidos no Brasil, lá funcionando um interessante "Museu da Loucura" para lembrar esse trágico período da nossa história.

Concluindo, após passar pela experiência de ler a história dos sobreviventes, e de conhecer um pouco do que acontecia, só posso reafirmar a minha convicção de que existe uma mentalidade arraigada que cria esse tipo de absurdo.  Parece ser sempre o mesmo:  pensar em hospital, e produzir o Hospital Colônia de Barbacena.  Pensar em prisão, e concretizar o Presídio de Pedrinhas.

Parece que a dignidade humana - princípio constitucional positivado - ainda não conseguiu comover ou inspirar melhores práticas.

2 comentários:

  1. Consta a interessante informação de que o Hospital Colônia de Barbacena foi construído na Fazenda da Caveira, recebida como pagamento ou prêmio por Joaquim Silvério dos Reis pela delação dos Inconfidentes (ARBEX, 2013, p. 240).

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  2. Há um documentário de Helvécio Ratton, chamado "Em nome da Razão" (1979) filmado no Hospital Colônia de Barbacena: https://www.youtube.com/watch?v=R7IFKjl23LU

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