segunda-feira, 17 de abril de 2017

Patrimônio cultural familiar (2): a arte de aprender a pescar

No post http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2015/08/patrimonio-cultural-familiar.html refleti um pouco sobre o acervo, o patrimônio cultural que é construído e legado pelas famílias às sucessivas gerações dos seus membros.

Essa herança, que vai além dos meros bens econômicos, confere identidade e sensação de pertencimento. Os conhecimentos e valores (culturais e morais) são o quadro no âmbito do qual desenvolvemos a nossa personalidade, e sentimos a sua continuidade através da estreita relação com a memória dos antepassados e a convivência com os contemporâneos.

Não sei se foi pela Semana Santa, com o seu apelo onipresente ao consumo de peixes, mas refleti bastante sobre uma herança específica que recebi da minha linhagem materna, que é o contato íntimo com o mar.

Algumas de minhas memórias mais felizes da infância estão à beira-mar.  Meu avô e meus tios maternos eram pescadores - não profissionais mas extremamente dedicados - e fui acostumada a ouvir a suas histórias (de pescador!) e a encarar o mar como fonte de contemplação, diversão e mantimentos.

Lembro, como se fosse ontem, que eram organizadas pescarias comunitárias com os membros da família e amigos (muitos mesmo), que me proporcionaram uma experiência comunitária interessante. Quando a pescaria era feita com redes (noturna), juntavam-se dezenas de pessoas para puxá-las, e havia uma interessante divisão de trabalho:  crianças e algumas mulheres ficavam na areia para esperar as redes, classificar e tratar os peixes viáveis e, eventualmente preparar refeições ali mesmo.

O resultado da pescaria era dividido igualmente entre as pessoas e todos comiam e bebiam ali mesmo.  Lembro também que essa era a hora de me recolher à mala do carro, onde minha mãe já havia colocado um colchão, travesseiros e brinquedos, e as crianças estacionavam quando estavam muito cansadas.

Se eu fechar os olhos, consigo  quase sentir o cheiro do mar e da noite, misturado às vozes alegres. Sem dúvida, uma bela lembrança.

Lembro também que foi no barco do meu tio que vi pela primeira vez um tubarão e um golfinho.

E qual foi o meu legado?  

Aprendi a pescar um pouco e a valorizar esse ofício tradicional, vendo a beleza da pesca artesanal que está morrendo.

Aprendi a amar e respeitar o mar - porque ele não tem cabelos, como dizia a minha vovó e minha mãe repetia. Sem cabelos e bordas não há como se segurar, e crianças devem ter muito cuidado ao nadar.

Aprendi a nadar, que é uma habilidade básica requerida pela família da minha mãe.  Para eles, é inconcebível que alguém não saiba nadar - e bem - porque o mar não tem cabelos.

Aprendi a ver o mar, a contemplá-lo e senti-lo. E sempre me sinto feliz quando tenho a oportunidade de ir à praia.

Aprendi que a experiência comunitária pode ser muito satisfatória, quando há felicidade e o compartilhamento dos bens comuns.


Um comentário: