sábado, 4 de julho de 2015

Conhece-te a ti mesmo, Brasil (10): a fidalguia em destaque

Quando o Brasil se tornou uma República - Res Publica - a Constituição fez mais do que mudar a as formas de Estado (unitário para federal) e Governo (monarquia para a república).  Ela mudou a relação entre cidadãos, pois todos são iguais.

Não seria necessário explicitar a igualdade como  fundamento em uma República, já que esse conceito está na base da estrutura, ainda mais se o regime for democrático.  Mas no Brasil, a igualdade precisa ser afirmada porque ela nunca é pressuposta, razão pela qual uma emenda constitucional de 1926 assim dispõs:


"Substitua-se o art. 72 da Constituição pelo seguinte:
"Art.     A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º Ninguem póde ser obrigado a fazer, ou deixar fazer alguma cousa, senão em virtude de lei.
§ 2º Todos são iguaes perante a lei.
A Republica não admitte privilegios de nascimento, desconhece fóros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerogativas e regalias, bem como os titulos nobiliarchicos e de conselho".

Muito bem, trinta e cinco anos depois de editada a Constituição de 1891, foi necessário dizer com todas as letras que os privilégios, títulos nobiliárquicos, prerrogativas não mais valiam.  E hoje, no ano da graça de 2015, ainda lutamos para fazer valer essa idéia.

A questão é que a fidalguia é uma cara instituição brasileira.  A palavra "Fidalgo"é formada pela aglutinação de filho + de + algo (ou alguém).  Então, uma pessoa é importante porque filha de alguém, denotando uma posição social privilegiada em função do nascimento,  o que é incompatível com a idéia de República.

E a relação com o "alguém" nem precisa ser direta:  o filho do sobrinho do amigo, que conhece o Alguém, se acha no direito de invocar esse argumento.

No Brasil, as pessoas dão muito valor a esse tipo de status que garante privilégios, e por essa razão a fidalguia vem sendo invocada diariamente, e possui diversas origens, principalmente econômicas. Quer perceber as manifestações da fidalguia brasileira?

a) A frase "você sabe com quem está falando"?  Aqui qualquer "título" é invocado para marcar a aura de fidalguia.  Pode ser um cargo público, o fato de alguém ser famoso, ou rico (mesmo que o enriquecimento decorra da apropriação indébita do dinheiro da República).

Essa frase é usada para evitar aplicação da lei ou para obter regalias, por exemplo, passar na frente das outras pessoas em filas de aeroporto.  No Brasil, alguns são mais iguais do que os outros.

b) A idéia de pertencer a algum tipo de elite.  É natural do ser humano formar grupos, criar identidade e laços de solidariedade para fortalecer-se coletivamente.  O problema é quando esse grupo se considera melhor, e os membros são os "escolhidos", enquanto todo o resto dos cidadãos da República são marginalizados.

Toda intolerância baseia-se em não reconhecer o outro como igual em direitos e deveres.

c) Numa República, os privilégios e garantias são das funções, e não das pessoas. Autoridades têm um protocolo diferenciado em respeito ao cargo, mas como no Brasil existe uma grande confusão entre o público e o privado (cf. http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/08/conhece-te-ti-mesmo-brasil-4a.html e http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2015/04/confusao-publico-privada-no-brasil.html), as pessoas viciadas em fidalguia querem exercer autoridade mesmo quando não o são, ou não estão no exercício das funções.

d) E, por fim mas não menos importante, a necessidade de ostentar os símbolos da fidalguia. Roupas, carros, acessórios (bolsas, sapatos, canetas, relógios) são semióforos, e quem os utiliza assim quer comunicar uma idéia de superioridade.  Por outro lado, se alguém se recusa a utilizar esses objetos ou é tratado como inferior, ou como excêntrico que não valoriza a sua posição social.

E, por qualquer desses motivos, também será discriminado.

De vez em quando assistimos ao espetáculo da fidalguia indevida, inadequada e inoportuna, essa sim uma triste marca identitária do povo brasileiro, a minar o ideal republicano.

2 comentários:

  1. Não, eu não esqueci da carteirada. Ela - a carteirada - é só a manifestação do prevalecimento fidalgo, e pode ser invocada pelos motivos a, b ou c.

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  2. E falando em carteirada, o senador Romário propôs um projeto de lei que criminaliza esse comportamento: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/romario-quer-criminalizar-a-pratica-da-%E2%80%9Ccarteirada%E2%80%9D/

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