Em 2016, a Constituição da República Federativa do Brasil está passando por um teste de efetividade. Ontem foi instaurado o processo de impedimento (impeachment) da Presidente Dilma Rousseff, e esse vai ser o primeiro da nossa jovem democracia.
Como todos lembram (espero) o ex-Presidente Fernando Collor não sofreu impedimento porque renunciou antes. Por isso, não havia procedimentos estabelecidos e foi necessário que o Supremo Tribunal Federal o construísse jurisprudencialmente.
No Brasil, para haver impedimento é necessário que esteja configurado "crime de responsabilidade". Os motivos pelos quais a Presidente Dilma Rousseff está sofrendo impedimento são dois: a abertura de créditos suplementares sem a autorização do Congresso e a realização de operações de crédito junto a bancos públicos, cuja legalidade está sendo questionada, e que foram denominadas de "pedaladas fiscais".
O objeto do impedimento foi delimitado por julgamento do Supremo Tribunal Federal , que restringiu o voto do relator da Câmara, para garantir o direito de defesa.
Ontem, a Câmara dos Deputados aprovou a instauração do procedimento. O "sim" ou "não" dão início ao processo, que será efetivamente julgado no Senado Federal, caso seja por ele autorizado. Então, haverá uma nova decisão de admissibilidade (maioria simples), a abertura de instrução, defesa, e só depois julgamento.
No Senado será discutido se as "pedaladas" são crime de responsabilidade. Em caso negativo, o processo deve ser arquivado por falta de justa causa. Em caso positivo, o impedimento será aprovado.
Resta saber se, nesse último caso, serão multiplicados os impedimentos de governadores e prefeitos que tenham praticado atos similares.
Esse post continua. Aqui, vamos destacar as impressões mais marcantes e notáveis, do procedimento, para lembrar posteriormente:
1) A minha primeira impressão da votação de ontem (17/04/2016) é que o "sim" justificou os meios. Os motivos alegados pelos deputados para votar o "sim" foram de natureza pessoal (pela família, pelo aniversário de familiares, religiosos) e poucos foram ideologicamente orientados, como o do Deputado Bolsonaro, que fez uma homenagem à memória do Coronel Brilhante Ustra. Cf: http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/as-1001-razoes-dos-parlamentares-ao-votar-o-impeachment/.
Para ler a ata da votação, e todas as razões apontadas para o sim ou não, basta acessar: http://www.camara.leg.br/internet/plenario/notas/extraord/2016/4/EV1704161400.pdf
2) Notável é a sensação de que as pessoas entraram para a História. Todos destacaram o fato de que a votação é "histórica", e é mesmo. A questão vai ser como a história será percebida, escrita e reescrita.
3) Ontem tive a impressão de que alguns deputados não entendem como funciona o Presidencialismo, que é o sistema político do Brasil. No Parlamentarismo, quando o chefe de governo perde a maioria dos votos do Parlamento pode vir a ser substituído, porque nesse sistema há separação das funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo. No Presidencialismo, isso não acontece, diferentemente do que justificou um deputado.
No momento, há uma proposta de emenda constitucional para mudar o sistema político do Brasil para o parlamentarismo, onde o chefe de governo (primeiro-ministro) é escolhido pelo Parlamento, cuja constitucionalidade está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal.
4) Em 22 de abril de 2016, data convencional do suposto descobrimento do Brasil, a Presidente Dilma Rousseff discursou na ONU. Não comemoramos o descobrimento, mas talvez passemos a comemorar o "autodescobrimento".
Curiosamente, dois deputados que não foram convidados compareceram ao evento.
5) A polarização maniqueísta desse momento político no Brasil é notável. De toda forma, houve um exercício mais consistente do direito à liberdade de expressão de qualquer dos lados e, até o momento, geralmente dentro dos limites da legalidade. Evidentemente, há pessoas que confundem liberdade de expressão com liberdade de agressão, ou falta de educação doméstica, independentemente da classe econômica a quem façam parte.
A polidez no trato social não é uma frivolidade, é uma condição básica para a convivência.
Brasileiros e estrangeiros, especialmente através da imprensa, estão se posicionando sobre o processo de impeachment. Sem dúvida, a imagem pública é um termômetro interessante da legitimidade política de qualquer governo.
6) O impedimento de um presidente, ou outra autoridade, deve ser fundado em um ato praticado pessoalmente, e não pelo "conjunto da obra". Mas além da questão óbvia, até agora não definida, se a presidente praticou crime de responsabilidade ou não, outras questões compõem o quadro do impeachment.
Uma das mais interessantes para a discussão na posteridade, com o devido distanciamento que o tempo nos proporciona, é a legitimidade do procedimento. Observe-se, que nem discuto ainda a legalidade (formal e material) do impedimento, mas a sua legitimação.
Hoje (05/05), o Presidente da Câmara que aceitou o pedido impeachment, foi afastado do cargo por liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal. O procedimento foi instaurado por voto dos deputados (o sim/não sem justificação legal, mas pessoal), e a relatoria no Senado por quem praticou atos similares aos imputados como crime, procedida por um partido de oposição que, por definição, não é neutro.
Como esse é o primeiro impeachment efetivo do Brasil, temos muito a aprender com essa experiência pioneira. É um precedente construído passo a passo, e não sabemos quais serão os demais.
7) Hoje (09/05/2016), o Presidente da Câmara dos Deputados em exercício anulou os atos do dia 15/04/2016 a 17/04/2016. Nesse momento, a admssibilidade do pedido de impeachment foi anulada, e teoricamente o processo deveria retornar àquele ponto.
Não sou uma pitonisa e infelizmente não dispomos de oráculos (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2012/08/resgatando-instituicoes-antigasoraculos.html) , mas certamente será proposta ação judicial no Supremo Tribunal Federal para anular o ato do Presidente da Câmara dos Deputados, de forma que o processo de impedimento retome o devido curso.
E nessa mesma data, anulou o próprio ato de anulação.
8) Em 12/05/2016, a Presidente Dilma Rousseff foi afastada cautelarmente do cargo. O Brasil tem agora dois presidentes, sendo um deles interino.
Situação parecida, mas não igual, ao Estado do Vaticano (Santa Sé), que tem atualmente dois papas.
9) Estamos vivendo um governo interino, mas como isso nunca havia acontecido, não há precisa definição dos seus limites e competências. Em princípio, mudanças estruturais profundas e medidas de longo prazo não coadunam com a precariedade da situação interina.
A questão da legitimidade do governo interino criou diversos questionamentos: desde a escolha de ministros (cujo perfil não contemplou a diversidade), até a instabilidade das decisões governamentais. Toda situação agravada por notíciais e gravações que comprometem o governo.
10) Todo esse prolongado procedimento de impeachment, a crise que o antecedeu e perdura, permite afirmar que o que ocorre agora é muito diferente do Golpe de 1961-1964 (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2012/09/memoria-brasileira-ditadura-de-1961-1988.html). Mas embora a História não se repita, sem dúvida rima neste caso. Vamos fazer uma rápida reflexão comparativa, que será desenvolvida no futuro de forma mais completa:
- Há diferenças notáveis entre o Golpe de 1964 e a situação de 2016 quanto ao modo, o contexto, embora os motivos possam ser semelhantes. Se for caracterizado como golpe (e essa resposta será dada pelo futuro), a situação de 2016 revelará o uso ilegítimo de um procedimento legal. Isso significaria a redução da garantia do devido processo legal a um instrumento a serviço de fins ilegais e injustos. O modo, portanto, diferiria da ruptura pela força que ocorreu em 1964, que ficou patente com a edição de atos institucionais.
- O tempo, a era, é também muito diferente. O maior acesso à informação e a sua velocidade permitem questionamentos que não são compatíveis com a necessidade de estabelecer uma versão oficial sem fraturas. Devido à necessidade de publicar rapidamente versões de fatos, manipulá-los (à direita, esquerda, acima ou abaixo), percebe-se que contrariando o modo brasileiro as pessoas estando expondo a sua posição e expondo-se à responsabilização por ela.
A forma e a legitimidade dos meios de comunicação, e a sua credibilidade no trato da informação, sem dúvida, são um ponto importante de toda a discussão.
- Sem dúvida, os brasileiros estão mais atentos à política. Discute-se política diariamente agora, ainda que de forma precária, incipiente, infantil ou inconsequente. O amadurecimento dos canais de discussão, espero, será uma consequência de toda a turbulência.
- Há também um questionamento generalizado quanto ao papel das instituições, dos Poderes da República, dos agentes. Até mesmo o Poder Judiciário, sempre tão distante dessas questões (como deve ser) foi tragado para o meio do turbilhão e agora atua baixo o oculum populi.
- Definitivamente, há uma grande diferença entre 1964 e 2016 que reside no fato de que o Presidente está no cargo, ainda que afastado. Essa circunstãncia levantou questionamentos muito importantes, e ainda não respondidos, sobre os limites de um governo interino, como tratar um presidente afastado (quais são suas prerrogativas). Além disso, há a possibilidade de que o presidente afastado reassuma o seu lugar por meios institucionais, o que é totalmente diferente do que aconteceu com João Goulart.
Na verdade, só em 2013 o mandato foi devolvido simbolicamente a João Goulart (http://www2.planalto.gov.br/centrais-de-conteudos/imagens/devolucao-simbolica-do-mandato-presidencial-a-joao-goulart), em sessão solene do Congresso Nacional.
A análise comparativa continua.
11) E o que dizer da legitimidade dos julgadores? Tantos senadores e deputados envolvidos em escândalos de corrupção eleitoral que nem dá para acreditar/contabilizar. Se tudo o que se conta é verdade, e quero acreditar que não, a empresa mais lucrativa do Brasil foi aquela que se instalou paralelamente à máquina pública, desenvolvendo uma relação parasitária.
12) Parecer técnico do Senado, basicamente, esclarece que não houve ato da Presidência que motivou o atraso em repasses devidos pelo governo (pedaladas), mas houve a emissão de decretos de abertura de crédito suplementar. Se isso configura crime de responsabilidade que implique em impedimento, agora é a grande questão. Ou deveria ser.
13) Agosto (sempre agosto), começou o julgamento do impedimento no Senado. A sensação que eu tenho, para usar uma metáfora esportiva, é que se trata de um campeonato de futebol cujas regras são construídas à medida em que os jogos se desenrolam.
14) Ontem, depois da instrução, a ainda Presidente Dilma fez o seu pronunciamento. O mínimo que se poderia fazer em um processo é dar a oportunidade do acusado falar, se quiser.
15) No julgamento do Senado, em 31/08/2016, Dilma Rousseff foi impedida por 61 votos contra 20.
16) Agosto na vida dos brasileiros (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2011/08/memoria-e-apocalipse.html)
(continua...)
Ainda pensando na falta de educação generalizada que norteia o debate político no Brasil, acredito que só saem frutos ruins dessa árvore envenenada. As pessoas estão confundindo falta de noção com exercício da cidadania.
ResponderExcluirQuem tem o direito de abordar pessoas estranhas na rua, restaurantes, e afrontá-las devido às suas concepções ideológicas? Onde esse comportamento foi aprendido?
Xingar as pessoas, por acaso, virou um modo adequado e aceitável de entabular uma conversa?
Paixão é sofrimento, e o assunto do impeachment definitivamente inspira paixões. E pessoas passionais estão dominando o debate irracional e pouco prático que sempre leva por estranhos caminhos na Política.
Talvez esse processo de impeachment, com todas as suas nuances, seja o melhor espelho que o Brasil possui para se conhecer.
ResponderExcluirEduardo Cunha, ex-deputado federal, em 12/09/2016.
ResponderExcluirNeste blog não esquecemos: #somostodoscunha, "meu malvado favorito", "Cunha, eu te amo".
ResponderExcluirLembrar: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1762082-veja-frases-dos-deputados-durante-a-votacao-do-impeachment.shtml
ResponderExcluirHoje as pessoas estão co-memorando um ano do golpe, tomando como marco o afastamento cautelar da Presidente Dilma Rousseff, que ocorreu em 12/05/2016. Nesse momento, a tendência é fazer balanços.
ResponderExcluirAo completar um ano, começaram os balanços. Porém, nesse ínterim, uma delação premiada revelou "atitudes pouco republicanas" (os eufemismos de sempre)do Presidente da República e do Senador Aécio Neves, dentre outros. Foi protocolado um pedido de impeachment do Presidente e cogitada a sua renúncia.
ResponderExcluirO impedimento de Dilma Rousseff começou quando o resultado da eleição de 2014 foi anunciado. A polarização do pleito, e a pequena margem de votos a seu favor propiciou o início da polarização (eleitores de Dilma X eleitores de Aécio), com a célebre atribuição de "culpa" pelo resultado, que depois misteriosamente virou Direita X Esquerda. Houve também a polarização de sempre "gente de bem-trabalhadora-pagadora de impostos" x vagabundos, que neste caso possui um eixo econômico, identificando-se os primeiros com a direita e os segundos, com algumas formas de "esquerda".
ResponderExcluirA revolta e a indignação da classe média, mais de uma vez, foi determinante para o futuro político do país (observe-se o separatismo canadense, e alguns totalitarismos europeus.)
Se o domingo 17/04/2016 entrou para a História do Brasil quando o "sim" justificou os meios, agora insinua-se que muitos votos foram comprados. Há informação de que empresários pagaram deputados para autorizarem a abertura de um processo de impeachment que, pragmaticamente, é bem mais barato que uma eleição.
ResponderExcluirO que dizer sobre a representação, a imagem, formada do novo governo? Uma elite antiquada, de "notáveis" homens brancos e ricos, misóginos e acusados de corrupção. Alguns pronunciamentos complementam esse quadro, pela tentativa de definição de um papel utilitário, secundário e decorativo para a mulher: adjetivos que precisamos ter (bela, recatada, caseira), submissas, executantes solitárias da economia doméstica, cujo orçamento foi previamente definido pelo marido.
ResponderExcluirHá uma narrativa de continuidade dos pleitos de 2013. Será que as "jornadas de junho" seriam o ponto de mutação da transição brasileira? Refletimos em algumas postagens sobre isso, mas ainda é um pensamento inconcluso.
ResponderExcluirOntem, dia 24/05/2017, um ato do Presidente da República - que convocou o exército para manter a ordem pública - assustou a memória coletiva e causou reações imediatas, certamente um pouco confusas, mas imediatas.
ResponderExcluirO famoso decreto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/dsn/Dsn14464.htm.
Editado no dia do meu aniversário, jamais será por mim esquecido.
2018, intervenção federal no Rio de Janeiro.
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