O cemitério é um lugar de consenso, onde todos, independentemente de sua condição social e econômica, de sua biografia, encontram o seu destino. Mesmo que a diversidade dos túmulos consagre as diferenças sociais - há falecidos que possuem jazigos impressionantes e outros enterrados em simples covas - todos passam da mesma forma para o "outro lado".
Nunca entendi porque há tanto silêncio nos cemitérios, mas esses lugares tão diferentes do resto da cidade barulhenta, e por isso são interessantes para a visitação e propícios à meditação. Passear pelas ruas da necrópole permite um intenso aprendizado, desde que sejam deixados de lado o medo e o preconceito, e desde que os túmulos sejam considerados documentos. A conduta das pessoas, os rituais, as sensações também são uma importante fonte de observação e aprendizado (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/03/beber-o-morto.html, http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/01/carpideiras.html).
Durante essa semana, tive a oportunidade de ler um livro muito interessante, cujo título é "À flor da pedra: formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros". Embora o Autor - Antonio Motta - o considere apenas um estudo preliminar, já conseguimos vislumbrar com ele como a morfologia dos túmulos, suas alegorias, a posição no cemitério é capaz de revelar o status social dos falecidos, sua auto-imagem, e concepções institucionais como a continuidade da família e crenças.
Portanto, antes que a ficha de leitura vá para o arquivo, resolvi destacar pontos interessantes:
- Uma referência ao "drive-up funeral home", invenção americana,que consistia em expor o cadáver em uma vitrine e as pessoas podiam comparecer ao velório sem sair do carro (p. 15 e nota p. 23).
- O tipo cemitério (jardim, verticais, necrópoles oitocentistas) e o tipo de túmulo (lóculos, campa-rasa e mausoléu) podem interferir na construção da memória individual do falecido e na memória coletiva.
- Os ritos funerários são momentos de intensa socialização e permitem exorcizar a morte e presentificar o falecido na memória dos vivos (p. 27). Essa intensa sociabilidade pode restaurar e fortalecer os liames entre os membros do grupo e entre gerações.
- Os túmulos são lugar de transformação. "Purificam" o cadáver que se decompõe, e ocultando-o, perpetuam a sua lembrança (p.28);
- No século XVIII as pessoas utilizavam túmulos fictícios como decoração de jardim na Inglaterra (!). A idéia era estimular a reflexão sobre a condição humana e sua própria finitude.
- No século XX a memória dos vivos passou a ser a imortalização. os mortos são eternizados na memória dos vivos (p. 54, concordo!).
- A morte virou pornografia, como afirma Gorer? O momento de morrer é cada vez mais íntimo, não há mais a Ars moriendi e representações de cenas no leito de morte. Antes a hora da morte era compartilhada por muitas pessoas. Por outro lado, os túmulos individuais e o luto individualizado contribuem para essa tendência de intimidade.
- Na minha cidade, na época da colônia, quem não tinha status ou condição financeira para ser enterrado nas Igrejas era jogado ao mar ou aos rios. E ficavam lá, à vista dos passantes, que gostavam de assistir ao espetáculo. Ainda hoje, há uma grande curiosidade das pessoas diante de um cadáver que, sim, ainda fica exposto durante muito tempo à curiosidade pública (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2011/01/memento-mori-o-direito-memoria-dos.html).
- Com exceção dos cemitérios pré-históricos, no Brasil são muito recentes. Até o século XIX as pessoas eram enterradas em Igrejas, ou simplesmente jogadas ao mar, rios, ou enterradas em covas rasas. A partir da década 1850, por razões sanitárias, o Estado criou cemitérios públicos.
- Essas necrópoles oitocentistas parecem uma cidade planejada, com quadras regulares, grandes alamedas e pequenas ruas.Há convergência do eixo monumental em um cruzeiro ou capela, em cujo entorno estão os enterramentos mais antigos, p 73. No cemitério há bons e maus lugares.
- A arte tumular nesses cemitérios é variada. Ornamentos de túmulos, com referência ao romantismo - corujas (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/07/mortalhas.html), morcegos, crânios, foices. Esculturas e representações de cenas dramáticas.
- no início do século XX os cemitérios eram espaços cívicos. As pessoas namoravam, passeavam, faziam piqueniques.
- Os epitáfios nos túmulos são uma afirmação da memória do falecido, p. 98. A inscrição podia ser o início de uma nova narrativa pessoal (http://direitoamemoria.blogspot.com.br/2013/06/direito-memoria-dos-mortos-lapides.html)
- O rito funerário era um espetáculo onde tudo contava: quantas pessoas compareceram? qual a intensidade de seus sentimentos? o cemitério é importante? o lugar é bom? os objetos funerários são de boa qualidade?
O post foi longo, mas contribuiu para que eu organize as minhas idéias sobre o tema. Recomendo a todos a leitura do livro referenciado abaixo que, entre suas virtudes, também consta belas fotografias dos túmulos tomados como exemplo.
Referência
MOTTA, Antonio. À flor da pedra - formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros.Recife: Fundação Joaquim Nabuco: Massangana, 2009.
Hoje é dia de lembrar dos falecidos -feriado de finados- 02 de novembro de 2013.
ResponderExcluirAgora estão caçando pokemons no cemitério: http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2016/08/cemiterio-tem-concentracao-de-cacadores-de-pokemon-em-piracicaba.html
ResponderExcluirhttps://www.sympla.com.br/visita-guiada-noturna-cemiterio-da-santa-casa-de-misericordia-de-porto-alegre__86857
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