A missão deste blog é lembrar e mostrar a importância da memória individual e coletiva, bem como os direitos e os deveres que a ela correspondem.
Nesta data - 8 de janeiro - há dois anos, assistimos à violação física e simbólica dos Poderes da República Federativa do Brasil. Cidadãos comuns, como eu e você, radicalizados por uma falsa polarização política, que abraçaram uma ideologia violenta na ação e no discurso, e acabaram atentando contra a institucionalidade do Estado Brasileiro e contra a democracia.
O desejo era destruir material e imaterialmente as bases da nossa organização política que, claro, não é perfeita mas é o fruto do aperfeiçoamento do nosso modo de fazer e de viver ao longo de gerações.
O amadurecimento político e institucional não vem com rupturas, mas com o permanente e sistemático aperfeiçoamento. A disciplina de evoluir contraria a ideia de romper, de esquecer e de passar a borracha.
Rupturas são a tradição política brasileira, assim como o desejo por anistia daqueles que participaram dos eventos. Isso já aconteceu dezenas de vezes na nossa história política.
Só para fazer um resumo rápido, e para que fique bem entendido para os meus alunos e para aqueles com quem eu nunca tive a honra de dialogar em sala de aula, percebam:
- O Brasil nasceu de um golpe. A nossa independência foi proclamada pelo herdeiro do trono português, que aqui ocupou as funções quando do retorno da Corte a Portugal. O Fico - quando ele disse à gente que ficava - foi um ato de desobediência e ruptura.
- O Brasil mudou de forma de governo - de monarquia para República - por meio de um golpe em 1889. No caso um golpe militar que nos levou a uma República Presidencialista, e também alterou a forma de Estado (de unitário para federação).
- O Brasil mudou de regime político na década de 1930 (1937-1945) por um golpe, que instalou a ditadura Vargas.
- Após a redemocratização desse período, o Brasil novamente mudou de sistema de governo e regime político no período de 1961 a 1988. O sistema presidencialista que é tradicional desde 1889 passou a parlamentarista em 1961, e esse período de conturbação política levou à mudança de regime (de democracia para ditadura) em 1964.
- A nova redemocratização ocorreu a partir da década de 1980, culminando com a volta do regime democrático, e uma certa confusão entre o presidencialismo e o semiparlamentarismo, que borrou de forma estranha os limites de atuação entre os poderes Executivo e Legislativo.
Cada ruptura exigiu uma nova Constituição, que nos permite registrar e rastrear os fatores que historicamente nos levam a essas convulsões. As sequelas dessas rupturas são permanentes, como assistimos agora nessa forma estranha de orçamentação que leva à discussão sobre emendas parlamentares e ao esvaziamento das funções de execução do Poder Executivo.
Nessa breve síntese já deu para perceber que o Brasil transitou por todos os modelos contemporâneos de forma de Estado, de governo, de sistema de governo e de regime político. O início e o fim da instalação dessas tentativas são marcados por rupturas e, de fato, não houve tempo suficiente para amadurecer quaisquer modelos institucionais.
A novidade na nossa trajetória é exatamente a Constituição de 1988 e sua permanência por mais de uma geração. Talvez essa permanência tenha ajudado a criar os anticorpos que evitaram uma nova ruptura institucional tentada em 8 de janeiro de 2023.
Eu estava trabalhando quando a culminância do processo de golpe de Estado de 2022-2023 aconteceu. Assisti pela televisão enquanto continuava trabalhando, e essa ausência de ruptura da normalidade me tranquilizou porque ficou claro que um golpe no século XXI seria diferente dos golpes anteriores.
A invasão e a depredação da sede dos Poderes da República foi a culminância de diversos atos prévios e outros preparatórios que levaram a essa tentativa de tomada hostil do poder. Os cidadãos que participaram desse evento do 8 de janeiro de 2023 estavam conscientes de desempenhar um papel histórico, embora o enredo escrito tenha sido bem diferente daquele por eles sonhado.
E o desejo por anistia é tradição também por aqui, pois a concessão de anistias abusivas integra o conjunto das práticas que levam ao esquecimento.
A lição que fica é que rupturas políticas agora são mais imateriais e graduais. Elas agem como um cupim corroendo a institucionalidade, às vezes invisível superficialmente, mas de efeitos devastadores quando a estrutura desaba.
É preciso estar atento aos cupins institucionais e lembrar, a cada 8 de janeiro, o que deverá ser feito para evitar novas rupturas. As mudanças são bem vindas, quando controladas e contextualizadas, e isso só a memória permite.
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Para ler outras reflexões sobre o 8 de janeiro no blog:
https://direitoamemoria.blogspot.com/2023/08/lembrar-o-8-de-janeiro-batalha-pela-data.html
https://direitoamemoria.blogspot.com/2024/01/8-de-janeiro-de-2024.html
https://direitoamemoria.blogspot.com/2023/09/8-de-janeiro-primeiras-condenacoes.html
https://direitoamemoria.blogspot.com/2024/01/comemoracao-do-8-de-janeiro-ato.html
Para aprofundar a leitura sobre essa questão da ruptura, sugiro a leitura de um trabalho que eu e Dra. Denise Teixeira publicamos sobre o Brésil: https://www.persee.fr/doc/aijc_0995-3817_2023_num_38_2022_3076
Recomendo também a leitura do livro Nação Enraizada, que publiquei em 2024. Não é por ser meu, e por eu concordar com tudo que está escrito ali, mas pela abordagem cultural desses processos políticos, que ajuda a entender de uma forma diferente.
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Antes que eu me esqueça: sim, esse assunto vai cair na prova. Para o resto da vida.