O brasileiro não tem memória.

Neste blog desmascaramos esta mentira.









domingo, 19 de setembro de 2010

O dever de lembrar e a destruição de autos judiciais: considerações sobre o projeto do novo Código de Processo Civil

O Direito utiliza-se da memória de várias formas: desde a previsão do testemunho, que é memória individual sobre fatos, até à utilização de documentos como meios de prova. A atividade jurídica consiste, basicamente, no registro e solução de conflitos e, por isso, os arquivos judiciais são uma importante fonte de pesquisa dos costumes, da linguagem e das relações sociais(Cf. DANTAS, 2010, p.22; CHALHOUB, 2007). O interesse dos historiadores e sociólogos sobre os autos judiciais brasileiros é relativamente recente. Já entre os juristas a pesquisa bibliográfica predomina, não havendo uma preparação específica para análise de autos findos como documentos históricos, cujo valor é sempre avaliado em função do seu específico valor probante no caso em discussão. Por este motivo, a comunidade de pesquisadores (historiadores, sociológos e juristas) que utilizam autos judiciais como fonte documental revela a sua preocupação com o teor do artigo 967 do projeto do Novo Código de Processo Civil, cuja finalidade é disciplinar a eliminação dos autos judiciais findos, no prazo de cinco anos. A maior crítica, e no nosso caso justificada, é que a regra geral é a incineração, ainda que precedida por chamada pública de interessados po Edital, enquanto que a preservação de documentos históricos dependerá do poder discricionário da autoridade competente. Tal sistemática, no nosso entender pode contribuir para a violação do direito à memória coletiva porque: a) O prazo de cinco anos é muito curto em escala histórica. Às vezes a importância de um fato para História só é percebida décadas depois, devendo ser ampliado esse prazo. b) É certo que, formalmente, a chamada de interessados através de Edital antes da eliminação garantiria o acesso à informação dos autos findos. Tal sistemática coaduna com os atos de comunicação processual e é importante para garantir o andamento do processo, e poderia ser mantida neste caso. O problema é que o público-alvo desse tipo de comunicação são as partes do processo, e seus advogados, que consultam o Diário Oficial onde tais convocações aparecem, e frequentam as Varas onde são publicados os atos em quadros específicos. Os demais interessados, historiadores, sociólogos, genealogistas, entre outros, dificilmente conseguiriam ser atingidos por essa convocação, o que na prática não surtiria o efeito de acesso aos autos judiciais desejado. c) A definição do "valor histórico" ficará a cargo da autoridade competente, que poderá ser um magistrado ou mesmo um órgão colegiado que conste com peritos (arquivistas, historiadores, por exemplo). Neste caso, há três problemas relacionados: o primeiro é que um documento pode ter outros valores além do histórico (pode ter valor científico e artístico); a definição desse valor, após apenas em um curto período de cinco anos, pode ser dificultada ou até inviabilizada pela impossibilidade de realizar o devido distanciamento entre a época em que foi produzido e suas repercussões; e o terceiro, é que o próprio conceito de História e valor histórico são mutáveis. O registro do cotidiano , da mentalidade da época, os costumes pode ser analisado mesmo naqueles processos que não são julgados "a priori" históricos . No mínimo, a redação do artigo deveria ser modificada para estender a guarda de autos judiciais pelo período de trinta anos, geralmente tomada como a medida de uma geração. Deixo outro ponto para a reflexão: como ficará o registro dos processos virtuais? A tendência da jurisdição brasileira é adotar cada vez mais os juizados virtuais, onde a tramitação dos processos é feita quase que exclusivamente pela internet.

Referências
CHALHOUB, Sidney. O conhecimento da História, o direito à memória e os arquivos judiciais. DANTAS, F.S. Direito Fundamental à Memória. Curitiba: Juruá, 2010.

9 comentários:

  1. Dra.

    Acho que tua última questão é muito pertinente! O registro virtual é, sem dúvida, uma faca de dois gumes. Digo isto porque Susan Sontag (grande autora) em seu livro sobre a Fotografia nos avisa dos perigos da conversão das memórias afetivas em veículos acessíveis somente quando há a prova. Acredito que, muito por causa deste fato, a definição de 'valor histórico' seja tão borrada; estamos passando por um momento de aferição numérica da memória (quantas fotos, quantas vezes fomos...). Quando tangenciamos o problema da definição de 'documento' e 'monumento' histórico, as coisas ficam mais embaralhadas ainda! A própria definição da atividade é confusa: não há uma preocupação dos historiadores, arquivistas, genealogistas e museólogos na preservação da relação das redes sociais com o espaço. Este, por vezes (e quando muito) favorece um pano de fundo pálido, ironicamente esquecido.

    A virtualidade trará um problema maior (na minha opinião)- a desconexão com o Espaço onde se dá o fato gerador do documento. São os males da (pós) modernidade.

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  2. Esse é um exelente exemplo da incapacidade do legislador de ver as coisas de modo transdisciplinar.
    O projeto quer autorizar a destruição da memória daquilo que não se tem vontade política de estocar.
    Evidente q essa é uma péssima idéia do ponto de vista juridico e de preservação de garantias processuais; por tantas razões que valeria um outro post. Pulo.
    Quanto ao ponto de vista histórico, esse prazo de 5 cinco anos, por sua exigüidade, é temerário e criminoso. Afirmação mesmo de que não se quer construir memória.
    Convém lembrarmos q artigo igual foi rejeitado no projeto do CPC de 1979.
    E convenhamos, propor a técnica da incineração de papel nos dias de hoje é realmente uma declaração solene de não-tô-nem-aí pro meio ambiente e pra gerações futuras.
    Aaliás, gerações no plural, mais de 30 anos, portanto.
    Eticamente insustentável um projeto de lei como este.

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  3. Existe um link na página do Senado em que se pode dar a opinião sobre os artigos do CPC, e é aberto a qualquer cidadão.
    Eu tentei na semana passada me insurgir contra a redação do artigo 967 do CPC, mas não consegui que a minha opinião fosse postada por erro.
    Vamos nos pronunciar contra isso. não é admissível incinerar a memória judiciária.

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  4. Ups, faltou excelência no meu excelente... Boto um c là!

    Vou dar uma olhada no site no Senado se tà funcionando. Jà tinha usado esse link sim, na época daquela reforma (absurda) do 282 CPC. Mas no fundo não acredito nem um pouquinho que se toma em conta o que é dito là. Acho que é apenas mais uma dessas pràticas postas à disposição do povo para se dizer q hà transparência no exercicio do poder, ou então, pra autoproclamação da democracia participativa.

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  5. Verifiquei que o prazo para o envio de sugestões encerrou em 30/09/2010. Mas pelo menos fica aqui o meu protesto contra o artigo 967 do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

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  6. Olha que trabalho interessante e importante no Rio Grande do Sul: uma equipe multidisciplinar está analisando os autos judiciais que serão descartados e está descobrindo coisas do arco da velha!

    Cf. http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2013/03/processos-judiciais-revelam-segredos-da-historia-do-rio-grande-do-sul-4076562.html

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  7. O novo Código de Processo Civil foi promulgado, sob o número de Lei 13105, e o comentado artigo que trataria da eliminação de autos não consta especificamente, porque esse é um tema polêmico. Houve uma emenda no projeto (http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/item/582-novo-codigo-de-processo-civil-ultimas-novidades), e a proposta foi retirada.

    Entretanto, vivemos uma fase de informatização dos processos judiciais. Já existe todo um universo de questões jurídicas que se desenrolam em processos exclusivamente virtuais, e isso terá um evidente impacto na gestão documental.

    Parece que a questão da eliminação de autos findos refere-se ao quantitativo passado e ao presente, e no futuro não muito distante, provavelmente essa discussão mudará de eixo e foco. Como podemos preservar os arquivos virtuais da obsolescência, da falta de energia elétrica, como e se publicizá-los, por exemplo, vão se tornar questões cada vez mais frequentes.

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  8. Enquanto isso, editais desse tipo vão sendo publicados: http://www.tjsp.jus.br/Download/PrimeiraInstancia/GestaoDocumental/Edital001-2015.pdf

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  9. Enquanto isso: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/14/plenario-aprova-regras-para-descarte-de-documentos-ja-digitalizados

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