O brasileiro não tem memória.

Neste blog desmascaramos esta mentira.









segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O DIA DO SACI

A criação de uma data celebrativa é a maneira de marcar um encontro no tempo entre as gerações que se sucedem. Em cada ano, vão se encontrar naquela data para co-memorar, ou seja, lembrar juntos, criando uma ligação entre o passado e o presente. O calendário oficial é um espaço privilegiado para construir e veicular os símbolos da comunidade,e revela também quais fatos, pessoas e valores são considerados como fator de unidade e identidade cultural. Pois bem, me deparei com o Projeto de Lei nº 2479/2003, de autoria da Deputada Angela Guadagnin (SP) e também com o projeto substitutivo apresentado pelo Deputado Aldo Rebelo (SP), cuja finalidade é instituir o dia do SACI, como instrumento de valorização do folclore, da cultura e das tradições brasileiras. A minha caça ao Saci começou no post sobre a "Deusa Memória", em que nós começamos a refletir sobre entidades que presidem ou patrocinam a Memória, começando por Mnemosyne e chegando a São Longuinho, por sugestão de Dra. Denise, que de comum acordo foi tirado da lista. E nessa discussão começamos a lembrar de lendas brasileiras, que são uma parte importante da minha memória individual infantil. Comecei a lembrar do que eu sabia sobre o saci, fui ao google e achei um livro interessantíssimo de Monteiro Lobato chamado "Sacy-Pererê: o resultado de um inquérito", realizado em 1918 pelo Jornal Estado de São Paulo, que supostamente foi a realização de uma pesquisa de opinião com os leitores, que encaminharam suas recordações por escrito à redação do jornal, indicando as características físicas do Saci. A finalidade declarada de Monteiro Lobato era criar uma imagem mais fidedigna do SACI para permitir a sua representação por meio dos artistas, e combater o "estrangeirismo desnacionalizante" que assolava a sociedade brasileira naquela época. Uma evidência disso era a existência de anões nibelúngicos, vestidos de lã no nosso calor tropical, adornando o Jardim da Luz, em São Paulo. Portanto, revelar a verdadeira face do SACI tinha um explícito fim identitário bem compatível com a mentalidade intelectual dos modernistas. Esse inquérito é composto por depoimentos escritos enviados à redação do jornal, mas não havia uma definição de público-alvo. Portanto, não há controle de quem presta a informação, nem de sua procedência no território brasileiro. São relatos de causos envolvendo o SACI e que ajudam a fazer o seu retrato falado. A leitura é muito divertida,mas evidentemente os relatos não podem ser tomados como dados válidos para fins de realizar uma pesquisa de opinião, até mesmo porque Monteiro Lobato frequentemente desconfia da autoria dos relatos (por exemplo, o depoimento de M. Aurorita, mocinha de 16 anos, que o autor jura ser homem...), sem contar que o próprio Saci prestou o seu depoimento, um dos menos esclarecedores, por sinal. Outro grande problema com os depoimentos é que são narrativas de estórias de terceiros. Apenas dois ou três "depoentes" afirmaram ter contato direto com o SACI, o que dificulta também a sua validação. E não podemos esquecer do Autor, cuja imaginação fértil e talento permitiriam criar, por farra, todos aqueles depoimentos em estilos e até idiomas diferentes. Lendo o livro, percebi que Monteiro Lobato não fez a tabulação dos depoimentos. Então, como ainda estou de férias (hoje é o último dia), procedi à uma tabulação simples, só para entender melhor...A metodologia utilizada foi a criação de categorias (que são nossas amigas)de dados: numeração dos depoimentos, nome do depoente, procedência regional, forma de depoimento, idade em que teve contato com o SACI, contato direto ou através de terceiros, quem transmitiu a estória, características físicas do SACI, ações e o campo "observações" para dados peculiares. É preciso fazer um parênteses para dizer quais são as premissas do meu raciocínio: 1) O Saci existe; 2) O Saci é patrimônio imaterial; 3) Monteiro Lobato apenas compilou depoimentos, ou seja, não os inventou. Vá lá, é mais um ato de fé do que qualquer outra coisa. Os resultados (aqui apresentados resumidamente) foram: CARACTERÍSTICA FÍSICAS DO SACI FREQUÊNCIA OBSERVAÇÃO NEGRO 53,94% UMA PERNA 35,5% CARAPUÇA VERMELHA 31,27% Barrete, gorro, boina, urupemba, urucum BAIXA ESTATURA 15,78% De meio metro a um metro OLHOS VERMELHOS 14,47% FORMAS DE MANIFESTAÇÃO FORMA HUMANA 57,8% REDEMOINHO DE VENTO 7,8% DIURNO AVE 1,31% URSO 1,31% Para ilustrar, fotos do indivíduo de frente e de perfil, esculpidas pelo meu irmão,Robinson Dantas, cujo quintal vem sendo a morada do Saci nos últimos tempos: Esclarecimento: o Saci é a figura na frente do fusca amarelo, que apesar de não andar não é uma escultura. Predominam os relatos sobre a forma humana, de baixa estatura, que acabam por fazer a associação dele com uma criança travessa. Então, basicamente, as ações do Saci são travessuras, que ocorrem em quatro espaços da zona rural: dentro de casa (tirar os objetos de lugar, estragar a comida, roubar coisas, fazer barulhos), no terreiro (chatear os animais, chupar seu sangue, enrolar crinas, dar galopes adoidados), nos caminhos assustando os viajantes e na mata. Em síntese, o Saci é um grande fazedor de merdas, e é responsabilizado pelas pequenas merdas cotidianas. Por exemplo, o leite azedou, os pratos quebraram, roupas e livros espalhados pela casa. Não, esse último não é culpa do Saci, é minha mesmo. A representação de Saci que passou à nossa memória coletiva corresponde àquela que obteve maior frequência nas respostas do "Inquérito" (forma humana, negro, baixa estatura, uma perna, carapuça vermelha). A minha memória individual do Saci é baseada na obra de Monteiro Lobato, especialmente nos seus livros do universo do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Isso é muito importante, porque o Saci é uma lenda nascida no interior paulista/mineiro/fluminense, e aparentemente não é nordestino. Essa estória não me foi transmitida oralmente, e apesar de conhecê-la na infância, na verdade quem me contou foi Monteiro Lobato. Não sei se é porque sou da cidade, e notadamente os sacis não são urbanos, mas em uma rápida enquete com alguns conhecidos da minha região, da minha geração, todos afirmaram que o seu contato com Saci ocorreu através dos livros ou do programa de televisão. Enfim, voltando ao dia memorial de Saci, soy contra. Primeiro por uma questão de razoabilidade, de adequação dos fins aos meios. A inclusão do dia do Saci no calendário oficial não é garantia da preservação desse patrimônio imaterial, não só porque há já outros dias criados que não cumprem o seu papel (Dia do Índio, 7 de setembro, por exemplo), não se justificando a utilização desse instrumento CARÍSSIMO que é a elaboração de uma lei. Segundo, nós brasileiros não cultuamos nem homenageamos assombrações.Nós temos medo de assombração. Logo, o Dia do Saci é uma tradição inventada. E, pela exposição no projeto substitutivo de Aldo Rebelo, tem a finalidade explícita de combater a influência estrangeira, que insidiosamente está impondo aos brasileiros o Halloween, que é incompatível com o nosso imaginário popular. Ou seja, a intenção é combater o Halloween criando um Halloween (?), desculpa Raloim,onde o Saci e seus amigos (Iara, Curupira, boitatá, e tantos outros)fossem uma alternativa cultural às entidades e super-heróis estrangeiros. Saci e seus amigos? Desde quando o Saci é amigo do Boitatá e de outras assombrações? É outra estória, outra memória. O Saci assim virou um símbolo de resistência contra a invasão estrangeira...Realmente,usar fantasias e fazer farras é absolutamente incompatível com o nosso imaginário popular. Esse projeto ainda tem um grandíssimo defeito. Utiliza como EVIDÊNCIAS os depoimentos do Inquérito de Monteiro Lobato, que inclusive reproduz extensamente trechos do livro. Nem Monteiro Lobato levou tão a sério a enquete a ponto de pretender sua transformação em Lei, e eu fico com a boca mais torta que a do Saci quando penso nisso.

27 comentários:

  1. Pô, Robinson tà cada vez melhor. Arretada a estatua do Saci.
    Ele abandonou o osso-buco?

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  2. Agora está fazendo esculturas em madeira, muito bonitas as peças.

    Tu sabes, artista tem fases...

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  3. @Denise, esse negócio de Saci não está fazendo bem à minha cabeça...

    Ontem dei uma aula sobre o histórico do Direito Administrativo e, como é tradição, iniciei a discussão sobre as repercussões da Revolução Francesa (separação dos poderes, princípio da legalidade, Estado de Direito) para fundamentar a disciplina.

    E ia tudo muito bem, transcorrendo em alto nível, quando eu me lembrei que a influência da Revolução Francesa no Brasil também foi iconográfica, especialmente pela adoção do barrete frígio usado pelos revolucionários franceses.

    Daí eu lembrei que o SACI USA UM BARRETE FRÍGIO, inclusive o Saci de Robinson usa exatamente esse modelo, e eu comecei a discorrer longamente sobre o saci (conceito, tipologia, teorias mista e eclética da ação do saci), quando eu percebi que a turma me olhava com aquele ar estranho, sabe? Em silêncio total.

    NUNCA OUVIRAM FALAR DO SACI NÃO? Tudo bem, podem não ter ouvido em uma aula de Direito Adminstrativo, enfim...

    Gostaria de ouvir a apreciação de vocês sobre o caso.

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  4. @ Fabiana: minha aprecição sobre o caso é que você é uma caso perdido.

    Minha senhora, o que é isso?

    Somente concluir o programa de D. Adm jà é uma cruzada, e a senhora ainda quer falar do saci?

    Além do mais, criatura, se tu for falar de todo mundo que meteu na cabeça o 'bonnet phrygien' da Revolução francesa e dos 'sans culotte', tu vai ter antes que falar que os frigianos não vieram em discos-voadores e, claro, depois falar que tb um dos Reis Magos ou os escravos alforriados na Grécia antiga tb usavam.

    Enfim, acho meio sem futuro isso.

    De toda forma, considerando que M. Lobato estava longe de ser um idiota, arrisco dizer que ele não meteu um barrete frigio vermelho na cabeça do saci do Sitio por acaso. A referência mais proxima é de simbolo de liberdade.

    ♫♪O saci não é de ninguém, ele é de todo mundo e todo mundo lhe quer bem ♫♪♫♪
    __________________________

    P.S. Tu viu que finalmente eu consegui colocar meu nome e minha foto no teu blérg? Ehehehe... demorou!

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    1. Olha o problemão: http://www.elespectador.com/noticias/politica/el-gorro-frigido-de-nuestro-escudo-patrio-articulo-688786

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  5. Ah, tai o problema (e armadilha) da tradução. O "boné" que tu pensa em português, é traduzido como "casquette".

    E o tal "bonnet", em francês, é o equivalente ao do Saci e Papai noel.

    E porque estamos na onda, tem o "beret", que equivale à boina, dos militares sem graduação, pintores românticos de filme hollywoodiano e Che Guevara.

    Afe, viva a globalização do chapéu lato sensu.

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  6. Quer dizer que a merda virou casquette?

    Realmente, tudo fica mais elegante em francês.

    Como se diz "Chapéu de Touro"?

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  7. 'Cocu'!!!
    E o pior é que se pode comprar o boné da Associação SOS Cocu por 6 dinheiros.
    http://www.cocus.org/
    Ahahahah!!!

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  8. Resultado da enquete: 100% dos votos contra o dia do Saci.

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  9. Saci foi candidato a deputado estadual: http://www.youtube.com/watch?v=-N8nLifcsE8.

    Assistam. É imperdível.

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  10. Qual é o Saci, ou a visão do Saci, que pretendem homenagear criando um dia memorial?

    Um pássaro, um urso, um negrinho com carapuça vermelha?

    Uma assombração, entidade, ou o "amiguinho do Boitatá e sua turminha"?

    Meu Saci é uma assombração e os brasileiros não as homenageiam. Nós temos medo de assombração, portanto não faz o menor sentido criar uma lembrança celebrativa, principalmente se a visão a ser celebrada for inventada e incompatível com a origem da manifestação cultural.

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  11. Saci: "criatura maléfica e zombeteira". confiram o site: http://www.brasil.gov.br/infograficos/folclore-brasileiro.


    Ma-lé-fi-co e zom-be-tei-ro.

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  12. Abriram vagas para Saci, e estão até fazendo testes, confiram o vídeo no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=2sjMlleGD-M.

    A versão ou perfil de Saci buscado no vídeo é aquela dos livros de Monteiro Lobato.

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  13. Outro dia ouvi a seguinte expressão "... que um pé de saci". Dei um pulo da cadeira e perguntei "como, o que foi que a senhora disse?".

    Bem, ela não estava conversando comigo, então deu a impressão de que eu me meti onde não era chamada. A senhora se assustou um pouco, talvez porque além de enxerida eu também estivesse com olhos esbugalhados. Enfim.

    Ela repetiu o que disse antes: "era tão espalhado como pé de saci". Então ela usa a expressão para descrever o pé do filho dela, que tem os dedos muito abertos, e parece que estava discutindo a dificuldade de comprar-lhe sapatos.

    - E onde a senhora aprendeu essa expressão?
    - foi quando eu era pequena, não me lembro.

    Certo, essa senhora devia ter mais ou menos um sessenta anos (eu devia ter perguntado a idade, e também o peso, só para completar a minha falta de educação).

    Ela era criança na década de 50, então deve ter aprendido essas idéias também com Monteiro Lobato. É algo a ser pesquisado.

    Da próxima vez que ouvir alguém dizendo isso (pé de saci), quem vai fazer um inquérito sou eu.

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  14. Para conhecer o texto aprovado na Comissão de Educação e Cultura do Congresso Nacional: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/235123.pdf

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  15. Por que os sacis apareciam em um comercial de Banco Econômico? https://www.youtube.com/watch?v=9LZg1Vk28d4

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  16. Criação de sacis bem sucedida em Porangaba (SP): http://g1.globo.com/sao-paulo/itapetininga-regiao/noticia/2015/08/empresario-diz-que-cria-17-casais-de-sacis-em-sitio-eles-aprontam-muito.html

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  17. Mapa com algumas assombrações: http://educacao.uol.com.br/infograficos/2013/08/21/conheca-o-folclore-pelo-brasil.htm

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  18. Continuo na defesa apaixonada contra o Dia do Saci.

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  19. Estou dizendo que o Saci não é bonzinho, mas "fumo ou esculacho", ao invés de "doçuras ou travessuras" também já é demais. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=Kcn1sThrdcQ

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  20. Hoje aprendi mais uma: "mais parado que saci de patinete". Para quem não entendeu, o patinete requer impulso com uma perna que, no caso do saci na versão mais tradicional, não existe. Há uma versão de Saci que afirma ser a outra perna muito rápida, e por isso não pode ser vista. Se essa for a versão verdadeira, então o ditado não se sustenta.

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