O brasileiro não tem memória.

Neste blog desmascaramos esta mentira.









sábado, 13 de julho de 2013

Mortalhas

Ontem à noite, quando passava pela janela da cozinha, ouvi uma coruja rasgando mortalha.  Segundo os antigos da minha região, isso é sinal de "mau agouro", indicativo de que alguém irá falecer.

Imediatamente, lembrei da primeira vez que ouvi falar em "mortalha", e também foi a primeira vez que eu vi uma. Aconteceu assim:  a minha tia-bisavó estava muito doente, foi para a casa da minha avó para ser cuidada.

Ela, muito velhinha e frágil, ficava deitada em um quarto, por onde sempre passavam pessoas, para que pudesse ser constantemente monitorada. Um dia, enquanto ajudava a minha avó a cuidar dela, vi um vestido preto, que na verdade parecia de um azul-marinho muito profundo.

Eu perguntei:

- Vovó, é para dobrar o vestido e guardar no armário?
- Não, Fabiana, essa é a mortalha da sua tia.

Mortalha, o que é isso?  Pensei, mas não perguntei na hora.  Um tempo depois, perguntei à minha avó o que era uma mortalha, e ela disse que era a vestimenta que a minha tia fez para ser enterrada.

Eu achei aquilo tudo assombroso porque me pareceu profundamente triste. E continuo achando assombroso, primeiro, que alguém pudesse costurar a própria mortalha com tanto tempo de antecedência (parece que ela havia feito isso há muitos anos) e, depois, a naturalidade com a qual aquele tema era tratado entre os antigos.

Ultimamente tudo ficou muito mais estranho porque o termo "mortalha" passou a ser utilizado para designar as roupas carnavalescas de quem participa de blocos de axé, e depois passaram a chamar de abadás.   Lembro que, uma vez, fui convidada a participar de um bloco de carnaval e me perguntaram se eu não ia comprar minha mortalha.

Tomei um susto! E ainda perguntei, inocentemente, se o carnaval estava tão violento assim, que as pessoas precisavam encomendar mortalhas. Era o final da década de 80 e essa moda da mortalha carnavalesca tinha acabado de chegar por estas bandas, eu não tinha ainda me adaptado aos novos tempos.

Aliás, como chego muito atrasada nos modismos, para mim a mortalha ainda é apenas o último suspiro fashion das pessoas, e guarda um simbolismo profundo como uma das expressões de última vontade.

3 comentários:

  1. Desconheço a que se relaciona o costume de usar mortalhas. Também ouvi a palavra ainda criança, relacionada, do mesmo modo, a uma parenta antiga, uma tia-avó. Neste caso - e não sei se foi assim com sua tia - era uma tia solteirona.

    Fico pensando se a necessidade de confeccionar uma mortalha - e divulgar, sem pudor, a providência - não decorreria de uma espécie de exercício, ao mesmo tempo privado e público, de aprender a se relacionar com a própria mortalidade. Pensar nela de uma maneira concreta, tomando providências para aspectos do ritual do enterramento.

    Penso também se não reflete uma vontade última de controle sobre como se quer que o próprio corpo seja embalado - uma embalagem apropriada para o tranporte ao além: sóbria, circunspecta e respeitável - e não lançar-se à sorte de ser vestido de qualquer modo, com restos de roupa ou, pior!, com um vestido florido, escandaloso, indecente.

    Como se tratava de uma senhora solteira, sem filhos, não seria esta uma providência de quem supunha que não teria alguém próximo que o fizesse por si?

    Quando ela morreu, na idade avançada de uns 95, 96 anos, não me ocorreu perguntar se a mortalha havia sido usada. Provavelmente, não. Confeccionada em uma época em que o costume ainda fazia sentido, e por uma mulher em torno de seus 40 anos que temia morrer logo, sua dona viveu tanto que as traças devem ter dado cabo da vestimenta.

    O tempora o mores: aos 40, hoje em dia, as pessoas nem de longe pensam em morte ou mortalha, e sim em ir à balada, à academia ou ao cirurgião plástico.

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  2. É verdade. Concordo com você em relação à sensação de "tomar providências adequadas". Parece que ao adotá-las a pessoa garante a adequação do seu funeral, conforme a sua auto-imagem e própria concepção de dignidade dos mortos.

    O ritual fúnebre, em geral, parece ter perdido uma parte importante do seu significado na nossa sociedade, e as mortalhas parecem seguir o mesmo destino.

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  3. As corujas eram utilizadas como adornos (escatológicos) dos túmulos nos cemitérios oitocentistas, assim como caveiras e ossos.

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