O patrimônio cultural que serve de suporte e veículo à memória coletiva é um constructo, uma construção social, resultado de um processo de atribuição de significados e sentidos que evidenciam a sua natureza política, econômica e social (DANTAS, 2010).
É portanto um espaço de luta e disputa, submetido a diferentes usos e diferentes interesses, que selecionarão os bens culturais dignos de serem preservados e transmitidos (CHAGAS, 2002, p. 17).
Os bens culturais materiais e imateriais que compõem o conjunto denominado “patrimônio” são semióforos exatamente porque possuem força simbólica. São disputados pela hierarquia política e porque representam e detêm poder e prestígio (CHAUÍ, 2006, p. 119), tal como os despojos de guerra que ornamentam os vencedores, pois destaca Walter Benjamin (1994, p. 225) que “nunca houve um monumento de Cultura que não fosse também um monumento da barbárie”.
Os sistemas simbólicos, assim, são instrumentos que servem para assegurar a dominação de uma categoria sobre outra (BOURDIEU, 2005, p. 11) e constituem-se na essência da memória coletiva. Por isso, afirma Nilson Morais (2000, p. 95) que “a memória deve ser pensada em seu contexto e produção sócio-históricos, portanto, em termos plurais, incluindo suas redes relacionais”, porque é a expressão partilhada de uma perspectiva, de um modo de compreender e relacionar o mundo.
Ao patrimonializar bens, a sociedade reproduz os seus preconceitos. Muitas manifestações culturais brasileiras foram proibidas, perseguidas e marginalizadas, podendo ser citadas como exemplo algumas religiões afro-brasileiras (com a prisão e internamento em hospícios dos praticantes), a capoeira, e outras importantes manifestações que simplesmente não eram valorizadas porque oriundas de classes desfavorecidas economicamente.
Há, portanto, uma injustiça cultural (ou simbólica) arraigada nos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, onde o não-reconhecimento assume as forma de invisibilidade social ou de desrespeito, impondo a alguém um modo de vida falso, distorcido ou reduzido (FRASER, 2001, p. 250).
A questão que se apresenta é: como conquistar o reconhecimento e exercer o direito à memória, em um mundo cheio de desigualdades materiais e simbólicas, onde a injustiça possui eixos culturais e socioeconômicos?
As pessoas não devem ter vergonha de assumir a sua herança cultural: devem exercitar a sua memória coletiva de forma fluida, se assim desejarem, construindo a sua identidade de forma positiva. Desde o sotaque, passando pela gastronomia, pelas formas de expressão em geral até chegar ao patrimônio material edificado, tudo isso deve ser encarado como alternativas, recursos culturais a serem utilizados para a construção de uma vida melhor e plena.
Como se pode, através de uma política pública de preservação, tentar concretizar o ideal da Justiça simbólica? Será que basta patrimonializar bens de grupos desfavorecidos, minorias, para quantitativamente tentar a igualdade?
Claro que não. Não basta acrescentar bens “representativos de minorias” à lista de preservação – uma espécie de sistema de cotas monumental – se forem deixadas intactas as dicotomias que criaram os preconceitos simbólicos, preservando as estruturas profundas do desrespeito que cria vergonha, não identidade cultural.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CHAGAS, Mário. Cultura, Patrimônio e Memória. Ciências & Letras, Porto Alegre, v. 31, p. 15-29, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à Cultura. São Paulo: Editora Função Perseu Abramo, 2006.
DANTAS, Fabiana Santos. O direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (org). Democracia hoje – novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, p. 245-282, 2001.
MORAIS, Nilson Alves de. Memória e mundialização: algumas considerações. In: LEMOS, Maria Teresa Toríbio Brittes; MORAIS, Nilson Alves de (org.). Memória e construções de identidades. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 92-101, 2000.
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