Ontem à noite, quando passava pela janela da cozinha, ouvi uma coruja rasgando mortalha. Segundo os antigos da minha região, isso é sinal de "mau agouro", indicativo de que alguém irá falecer.
Imediatamente, lembrei da primeira vez que ouvi falar em "mortalha", e também foi a primeira vez que eu vi uma. Aconteceu assim: a minha tia-bisavó estava muito doente, foi para a casa da minha avó para ser cuidada.
Ela, muito velhinha e frágil, ficava deitada em um quarto, por onde sempre passavam pessoas, para que pudesse ser constantemente monitorada. Um dia, enquanto ajudava a minha avó a cuidar dela, vi um vestido preto, que na verdade parecia de um azul-marinho muito profundo.
Eu perguntei:
- Vovó, é para dobrar o vestido e guardar no armário?
- Não, Fabiana, essa é a mortalha da sua tia.
Mortalha, o que é isso? Pensei, mas não perguntei na hora. Um tempo depois, perguntei à minha avó o que era uma mortalha, e ela disse que era a vestimenta que a minha tia fez para ser enterrada.
Eu achei aquilo tudo assombroso porque me pareceu profundamente triste. E continuo achando assombroso, primeiro, que alguém pudesse costurar a própria mortalha com tanto tempo de antecedência (parece que ela havia feito isso há muitos anos) e, depois, a naturalidade com a qual aquele tema era tratado entre os antigos.
Ultimamente tudo ficou muito mais estranho porque o termo "mortalha" passou a ser utilizado para designar as roupas carnavalescas de quem participa de blocos de axé, e depois passaram a chamar de abadás. Lembro que, uma vez, fui convidada a participar de um bloco de carnaval e me perguntaram se eu não ia comprar minha mortalha.
Tomei um susto! E ainda perguntei, inocentemente, se o carnaval estava tão violento assim, que as pessoas precisavam encomendar mortalhas. Era o final da década de 80 e essa moda da mortalha carnavalesca tinha acabado de chegar por estas bandas, eu não tinha ainda me adaptado aos novos tempos.
Aliás, como chego muito atrasada nos modismos, para mim a mortalha ainda é apenas o último suspiro fashion das pessoas, e guarda um simbolismo profundo como uma das expressões de última vontade.