No post https://direitoamemoria.blogspot.com/2024/05/ferias-2024-memorias-parte-1-altitude-e.html falamos sobre a primeira parte das minhas impressões sobre a região de Cusco, e como a altitude e atitude são características da identidade cultural andina.
Essas memórias, tão sinteticamente retratadas nesse post, são fruto de aprendizado do que me foi ensinado e exposto. A visitação turística é uma oportunidade de aprender muito mais do que está à sua frente: aprendemos a ver como as pessoas interagem com o patrimônio cultural, qual a sua experiência e pontos de vista.
Há sempre mais para perceber do que está à mostra. Ao visitar o Museu de sítio de Qoricancha e o Museu Inka aprendi que havia um grande número de diferentes grupos culturais que habitavam a região que iria ser o Tawantisuyo. Esses grupos tinham modos de viver e fazer distintos, língua, religião, e frequentemente eram presas de outros grupos.
A relação nem sempre cordial entre esses grupos determinou uma dinâmica de constantes ocupações, das quais o Império Inca foi a forma mais abrangente, antes da invasão espanhola. A ocupação promovida pelos incas inaugurou uma forma administração centralizada desconhecida na região, e possibilitou o incremento do comércio e das relações dos grupos que viviam no Tawantisuyo.
Os governantes (incas) eram invasores de Cusco que vieram do território que hoje se conhece como Bolívia, pelo menos essa é a teoria mais difundida.
Essa observação, e a cronologia que a baseou, para mim foi fundamental para entender o sentimento de ruptura que aparece na conversa das pessoas consistentemente.
Ao falar sobre a herança cultural, focando no período inca e esquecendo o que houve antes, as narrativas abrigam duas espécies de informação: a primeira, um grande pesar pela interrupção do progresso civilizatório trazido pelos incas (como estaríamos hoje, se não houvesse a invasão espanhola), e um ressentimento difuso pela forma como foi efetivada a colonização espanhola.
Ao ouvir os relatos - matéria-prima da memória coletiva - pude vislumbrar de forma clara o que o desenraizamento causa. O trauma da colonização foi profundo, e existe uma tendência de "renascimento", palavra que aqui vou usar de forma inadequada por falta de termo melhor, com o retorno às origens, que lá são localizadas na ideia imaginada, mais que comprovada, do que era o áureo período inca.
Não se trata de um retorno nativista à moda do incanismo, esse movimento intelectual de resistência cultural, que encontra semelhança com o que ocorreu no Brasil no início do século XX, com os modernistas. A construção da identidade nacional baseada em sentimentos nativistas, que caso da América do Sul frequentemente remeterá à visão idealizada dos povos originários, é parte da ruptura colonial.
Se pudermos comparar, ainda que forma muito sintética o que aconteceu com o sentimento nativista no Brasil e no Peru, existe uma diferença fundamental: no Peru as nações originárias mantiveram a sua forma de organização sob a dominação espanhola, e houve tentativas organizadas de resistência contra o poder colonial, como a revolta comandada por Tupac Amaru II. No meu sentir, que pode não ser o mais teoricamente fundado, a resistência decorreu da memória das invasões do território acima referidos, desde a época pré-incaica. Resistência é um modo de viver daquela população.
Para concluir esse post que já muito longo, apenas gostaria de acrescentar que pude verificar na prática o paradoxo dos Estados pós-coloniais, em que o nacionalismo estimulou independências, porém a as instituições coloniais moldam a sociedade, trazendo divergências cismáticas porque, mesmo que se adote um sentimento nativista com o forma de afirmação e oposição, o funcionamento da sociedade se dá conforme as estruturas coloniais herdadas (DANTAS, 2024, p. 51).
REFERÊNCIA:
DANTAS, Fabiana Santos. Nação enraizada - Estado, Identidade e Preservação. Curitiba: Juruá, 2024.