O trabalho publicado, fruto da parceria produtiva com profa. dra. Denise Teixeira de Oliveira, que também é uma amiga da vida inteira:
https://www.persee.fr/doc/aijc_0995-3817_2023_num_38_2022_3076
O trabalho publicado, fruto da parceria produtiva com profa. dra. Denise Teixeira de Oliveira, que também é uma amiga da vida inteira:
https://www.persee.fr/doc/aijc_0995-3817_2023_num_38_2022_3076
No post https://direitoamemoria.blogspot.com/2024/05/ferias-2024-memorias-parte-1-altitude-e.html falamos sobre a primeira parte das minhas impressões sobre a região de Cusco, e como a altitude e atitude são características da identidade cultural andina.
Essas memórias, tão sinteticamente retratadas nesse post, são fruto de aprendizado do que me foi ensinado e exposto. A visitação turística é uma oportunidade de aprender muito mais do que está à sua frente: aprendemos a ver como as pessoas interagem com o patrimônio cultural, qual a sua experiência e pontos de vista.
Há sempre mais para perceber do que está à mostra. Ao visitar o Museu de sítio de Qoricancha e o Museu Inka aprendi que havia um grande número de diferentes grupos culturais que habitavam a região que iria ser o Tawantisuyo. Esses grupos tinham modos de viver e fazer distintos, língua, religião, e frequentemente eram presas de outros grupos.
A relação nem sempre cordial entre esses grupos determinou uma dinâmica de constantes ocupações, das quais o Império Inca foi a forma mais abrangente, antes da invasão espanhola. A ocupação promovida pelos incas inaugurou uma forma administração centralizada desconhecida na região, e possibilitou o incremento do comércio e das relações dos grupos que viviam no Tawantisuyo.
Os governantes (incas) eram invasores de Cusco que vieram do território que hoje se conhece como Bolívia, pelo menos essa é a teoria mais difundida.
Essa observação, e a cronologia que a baseou, para mim foi fundamental para entender o sentimento de ruptura que aparece na conversa das pessoas consistentemente.
Ao falar sobre a herança cultural, focando no período inca e esquecendo o que houve antes, as narrativas abrigam duas espécies de informação: a primeira, um grande pesar pela interrupção do progresso civilizatório trazido pelos incas (como estaríamos hoje, se não houvesse a invasão espanhola), e um ressentimento difuso pela forma como foi efetivada a colonização espanhola.
Ao ouvir os relatos - matéria-prima da memória coletiva - pude vislumbrar de forma clara o que o desenraizamento causa. O trauma da colonização foi profundo, e existe uma tendência de "renascimento", palavra que aqui vou usar de forma inadequada por falta de termo melhor, com o retorno às origens, que lá são localizadas na ideia imaginada, mais que comprovada, do que era o áureo período inca.
Não se trata de um retorno nativista à moda do incanismo, esse movimento intelectual de resistência cultural, que encontra semelhança com o que ocorreu no Brasil no início do século XX, com os modernistas. A construção da identidade nacional baseada em sentimentos nativistas, que caso da América do Sul frequentemente remeterá à visão idealizada dos povos originários, é parte da ruptura colonial.
Se pudermos comparar, ainda que forma muito sintética o que aconteceu com o sentimento nativista no Brasil e no Peru, existe uma diferença fundamental: no Peru as nações originárias mantiveram a sua forma de organização sob a dominação espanhola, e houve tentativas organizadas de resistência contra o poder colonial, como a revolta comandada por Tupac Amaru II. No meu sentir, que pode não ser o mais teoricamente fundado, a resistência decorreu da memória das invasões do território acima referidos, desde a época pré-incaica. Resistência é um modo de viver daquela população.
Para concluir esse post que já muito longo, apenas gostaria de acrescentar que pude verificar na prática o paradoxo dos Estados pós-coloniais, em que o nacionalismo estimulou independências, porém a as instituições coloniais moldam a sociedade, trazendo divergências cismáticas porque, mesmo que se adote um sentimento nativista com o forma de afirmação e oposição, o funcionamento da sociedade se dá conforme as estruturas coloniais herdadas (DANTAS, 2024, p. 51).
REFERÊNCIA:
DANTAS, Fabiana Santos. Nação enraizada - Estado, Identidade e Preservação. Curitiba: Juruá, 2024.
Em maio de 2024 o Rio Guaíba transbordou e o Rio Grande do Sul experimentou a maior enchente da sua História. As cenas de desespero, da destruição e de todos os sentimentos que se seguem a uma catástrofe como essa são marcas indeléveis na nossa memória coletiva brasileira.
Os traumas são transmitidos pelas gerações, e não foi por outro motivo que se fala tanto da inundação de 1941, que até então era o marco das lembranças daquela população.
Em outros lugares, outras enchentes e outros marcos são lembrados, como vimos nos posts https://direitoamemoria.blogspot.com/2011/05/trauma-e-memoria-coletiva-viva-o-caso.html , https://direitoamemoria.blogspot.com/2015/03/trauma-e-memoria-coletiva-2-marcos.html , mas a seca também ativa a memória quando deixa em evidência as pedras da fome ( https://direitoamemoria.blogspot.com/2022/08/trauma-e-memoria-coletiva-3-alertas.html ).
As lições proporcionadas pelas tragédias são um lacrimatório, onde as memórias dolorosas flutuam.
Nesses meses de maio a agosto muitas cidades brasileiras sofrem e sofrerão com eventos dessa natureza, a questão é saber como as lições serão aproveitadas para reduzir esses efeitos que, em razão de fatores antrópicos e climáticos, vão se repetir ciclicamente.
A gestão de recursos hídricos é uma questão de vida e morte, e exige um planejamento sistêmico, constante e multidisciplinar. A água é um recurso escasso porque a escassez nem sempre é uma questão de quantidade, mas de qualidade (DANTAS, 2005), e é uma força poderosa que precisa ser corretamente manejada.
Em algumas situações simplesmente não é passível de controle humano. Mas o que uma sociedade organizada pode fazer é preparar as pessoas com informação correta, prévia, e ajudá-las a enfrentar e superar os desastres, adotando cotidianamente medidas administrativas que possam amenizar os seus efeitos.
O contrário disso é permitir o desmatamento, a expansão urbana desordenada, não monitorar corretamente os corpos hídricos e os fatos que os afetam, e deixar as pessoas desinformadas e desprotegidas. A tragédia, que era natural, torna-se muito maior com a cumplicidade humana.
Força, gaúchos! A nação está com vocês.
Referência
DANTAS. F.S. Gerenciamento de recursos hídricos: uma análise crítica da Lei nº 9433/97. In: KRELL, Andreas Joachim (org.). A aplicação do Direito Ambiental no Estado Federativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Há quatro anos a pandemia chegou ao meu mundo. Naquele já quase longínquo 16 de março de 2020 a minha vida mudou muito, mesmo (cf. https://direitoamemoria.blogspot.com/2020/12/impressoes-da-pandemia-2020-volume-1.html).
Foi um trauma coletivo sem precedentes quanto à extensão, capaz de marcar profundamente a memória coletiva. Sempre me perguntava como seria a memória desse experiência sincrônica em que a Humanidade toda foi afetada por uma doença e para sobreviver isolou-se por tempo tão prolongado?
Sem dúvida, a associação com uma forma apocalipse é inevitável, mas ficou claro que se trata um processo e não de um evento.
Acho notável que um processo tão traumático não seja lembrado com mais frequência pelas pessoas. Aqui onde moro ninguém fala sobre esse tempo: alguns lembram das milhares de vítimas brasileiras, de um ou outro fato mais denso, mas a memória nesse caso parece estar trabalhando silenciosamente, e escondida dentro do coração das pessoas.
Para mim, essa memória é construída em fases que eu sempre revisito.
A primeira - da ignorância e do medo generalizados. Uma grande incerteza quanto ao futuro e a clara sensação de que a desigualdade socioeconômica aqui apareceu de forma aguda.
É claro que a pandemia não revelou a desigualdade, pois ela é evidente, basta olhar em volta. Mas, nessa situação excepcional percebi como a desigualdade é profunda e enraizada, e como a vida e a morte são diferentes para as pessoas. Não se trata de classes sociais, mas de mundos diferentes.
A segunda fase exigiu adaptação, isso para mim significou aprender novos comportamentos. Organizar a minha rotina para criar uma normalidade adequada àquela situação. Aprendemos a sobreviver, e isso é muito importante.
A terceira etapa trouxe a vacina, novas cepas da COVID-19, e uma sensação de amanhecer de um novo tempo que, de vez por outra, ainda experimento.
Alguns comportamentos normalizados durante a pandemia certamente já fazem parte da minha vida e da minha mentalidade: evito aglomerações, continuo usando álcool para higienizar tudo, uso máscara quando estou gripada e sou grata porque chegamos aqui, pois a gratidão também é uma consequência da memória.
Durante a pandemia meu lindo sobrinho Ramiro nasceu (https://direitoamemoria.blogspot.com/2020/06/ramiro.html). Estávamos no início da terceira quarentena (https://direitoamemoria.blogspot.com/2020/07/tres-quarentenas.html), e a essa altura eu já não sabia o que pensar diante da confusão, da irracionalidade e da falta de lucidez de algumas pessoas.
Gente que não acreditou que a pandemia existia. Nem em máscaras, nem em vacinas, mas em remédios sem comprovação científica, e isso tudo no século XXI. Fiquei pensando em outras épocas, como a Peste Negra e gripe espanhola, e tive a certeza de que essa loucura aconteceu também, porque não há nada de novo sob o sol.
Quando eu olho para Ramiro, tão feliz e interessante e com quase quatro anos, só posso considerar que superar um trauma é ver uma nova geração florescer e se desenvolver, e fico mais grata ainda por ter a chance de testemunhar esse novo tempo.
A letra dessa música tem muitos regionalismos, palavras só nossas, que nos ajudam a expressar mas dificultam o entendimento de quem é de outro lugar. Todo mundo que já teve a sorte de amar alguém de verdade passou por isso e vai entender, qualquer que seja a cultura que formatou o seu sentimento:
A região de Cusco é inacreditável, mas mais inacreditável é como as pessoas vivem e produzem cultura naquele ambiente tão difícil.
Imagine a minha surpresa, de bichinho criado à beira-mar, ao perceber que as pessoas não consideram as montanhas como obstáculos. Elas são parte indispensável do modo de viver e sentir, que é modulado pela altitude.
Vejam, é diferente viver e produzir a mil, dois, três, quatro ou cinco mil metros de altitude. Tudo muda: o tipo de cultivo, a forma, o acesso a água, a gastronomia, a atitude das pessoas diante dos desafios trazidos pelas condições geográficas e climáticas.
Os habitantes da região de Cusco, inseridos na cultura andina mais que na "peruana", têm uma forma de viver que molda a sua identidade cultural. Nós (e já me incluí) andinos temos uma forma específica de interagir com e integrar a paisagem.
Andar naquelas montanhas é desafiador, especialmente para quem vive na altitude zero como eu, mas não é só a altitude que tira o fôlego. O vislumbre de como as pessoas se relacionam com paisagem ali é emocionante, e podemos aprender lições de vida sobre resiliência, sobre distinguir o que é realmente importante e necessário, sobre como a beleza é simples, e como isso tudo ajuda a moldar uma atitude correta diante da vida.
Dizer que as pessoas são "espiritualizadas" não é suficiente para explicar essa atitude respeitosa e grata diante da vida.
Essa minha sensação pode ser causada pela energia mística de Cusco, ou pelas muitas doses alcoólicas que lá tomei enquanto refletia sobre a beleza, a graça, o espírito e a constância, representada pelas montanhas que nos cercam. A cidade é o umbigo do Império Inca, e sabemos que umbigos (ônfalos) são simbolicamente a representação do centro de um universo, de onde são geradas todas as coisas.
Os andinos são atentos à altitude, informam-na a todo momento. Eles sabem a quantos metros tudo está, e essa particularidade faz mais sentido quando visitamos um lugar como Moray, que representa o esforço de aclimatação de espécies para a produção em diferentes altitudes.
A atitude aqui é olhar uma montanha gigantesca e nela ver uma oportunidade de produzir e viver. Adaptar-se, prosperar, e aos poucos transformar esse esforço intergeracional em um modo de vida belo, complexo, sofisticado e capaz de encontrar a harmonia entre os complementos (feminino, masculino, embaixo, em cima), espelhando a existência.